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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Cartas a João Gaspar Simões - 2/4 Abr. 1933]

Apartado 147.

Lisboa, 2 de Abril de 1933.

Meu querido Gaspar Simões:

Tantas foram as complicações de ordem prática e urgente que desabaram sobre mim o mês passado que só hoje – domingo – pude começar a passar a limpo os Indícios de Ouro do Sá-Carneiro.

Aí lhe mando o que já passei, que é quase metade do livro. Ir-lhe-ei mandando o resto à medida que o for trasladando. Envio, e enviarei sempre, dois exemplares, pois pode ser conveniente v. ter um duplicado, e nada custa tirá-lo quando se escreve à máquina. Logo que esteja pronto o traslado dos Indícios de Ouro, farei o do Guardador de Rebanhos.

O Sá-Carneiro aceitava a ortografia moderna, sim­plificada, oficial – ou como se lhe queira chamar. Não sei se vocês seguem um critério de uniformização orto­gráfica nos livros da colecção; seja como for, no caso do Sá-‑Carneiro isso está certo, pois assim ele queria e fazia, pedindo às vezes que lhe emendassem a ortografia, para ficar certa com a oficial, onde ele tivesse dúvidas se escrevera realmente de acordo com ela.

Não garanto que esteja tudo rigorosamente certo por esse critério. V., porém, fará o necessário para que fique certo. Há, possivelmente, erros de grafia do pró­prio Sá-Carneiro, e alguns haverá meus, por lapso, ao copiar. Há porém algumas observações a fazer, relati­vas a pontos onde se não deve emendar, ou alterar, embora pareça melhor de outra maneira. Os pontos re­sumem-se a três: (1) Certas palavras (por ex. Ouro ou oiro) que se escrevem indiferentemente com OU ou OI, escreve-as o Sá-Carneiro umas vezes de uma maneira, outras vezes da outra; isto correspondia, como sei, a um impulso rítmico, e não deve portanto alterar-se. (2) Há que manter as maiúsculas como ele as pôs, embora por vezes não seja fácil perceber porque delas usou, e outras vezes o uso seja absurdo e até contraditório dentro do mesmo poema. Nisto, como v. compreende, também se não deve tocar. (3) O mesmo se aplica à pontuação, extraordinariamente irregular e fantasista, mas a que o Sá‑Carneiro ligava uma grande importância. Várias ve­zes eu repontei com ele por causa de traços onde con­viria pôr vírgulas, ou ponto-e-vírgulas, etc. Mas ele, apesar de pronto a anuir em outras coisas, nesta nunca anuía. Concordava muitas vezes comigo, mas tinha amor a essa pontuação especial. Por isso se lhe não deve tam­bém tocar.

Creio que são estas as únicas observações que há a fazer. Depois de estar completo o traslado do livro, enviar-‑lhe-ei uma nota preliminar, ou projecto dela, para v. ver se tem cabimento. Pensei, primeiro, em mandar, para prefácio, as breves linhas que escrevi, com o mesmo sentido, na Athena. Acho melhor não as incluir. Mas é por certo essencial que se diga qualquer coisa (uma página ou duas bastará) sobre os Indícios de Ouro a sua publicação agora, etc.

Propriamente falando, os Indícios de Ouro acabam numa composição chamada Último Soneto, publicada já ou na Athena ou noutro lugar (neste momento não me lembro) ; e o soneto que começa: «Que rosas fugi­tivas foste ali!» e acaba «Onde a minha saudade a Cor se trava». Para além disto há os três sonetos O Fan­tasmo, El-Rei e Aquele Outro (publicados na Athena), um poema Crise Lamentável, que está inédito, e os ver­sos finais (que vieram na Athena também), aquela es­pécie de pré-epitáfio com que fecham os poemas ali insertos – Ora confesso que não sei se deixe os Indícios de Ouro fechados com o Último Soneto, se lhe agregue estes outros poemas. Há argumentos em favor de qual­quer das coisas: por um lado o livro estava natural­mente completo com o último Soneto a fechá-lo; por outro lado o Sá‑Carneiro, numa das suas últimas cartas, dizia-me que, quando publicasse o seu livro de versos, juntasse estes poemas. O natural seria esta segunda hi­pótese. Receio, porém, que apareçam outros poemas, que ele se esquecesse de mencionar, entre as muitas car­tas que me escreveu de Paris por essa altura e pouco antes, e que não tive ainda ocasião de reunir e examinar com cuidado, carta a carta. Ora estes poemas, a apare­cer, formariam, com os tais suplementares, os Últimos Poemas do Sá-Carneiro, e assim deveriam figurar nas Obras Completas, não aqui neste livro. Se v. tiver alguma opinião que ache que me pode habilitar a ver claro nisto, dê-ma.

3 de Abril.

Por efeito da acção vulgar do tempo normal, não­-eínsteiniano, tive ontem que interromper esta carta na altura em que v. a vê interrompida. Estive hoje a rever o que tinha passado a limpo, e a fazer certas emendas, sobretudo as que derivavam de uma comparação do texto escrito do Sá‑Carneiro com o texto impresso no Orpheu, naqueles poemas do livro que saíram no n.º 1; fiz prevalecer, é claro, o texto do Orpheu, pois esse foi revisto, com o devido cuidado, pelo Sá‑Carneiro e por mim.

Esquecia-me de apontar que, não para poupar papel mas tempo, copiei os poemas a fio; suponho, contudo, que v. os fará imprimir em páginas separadas. Assim estão, é claro, no próprio livro manuscrito do autor.

Esta carta deve seguir amanhã, e não ainda hoje, e é possível que eu consiga arrancar uns minutos con­secutivos ao comércio de Lisboa para avançar o tras­lado do livro. Interrompo outra vez.

4 de Abril.

Fecho esta carta sem adiantar nada no traslado dos poemas. Vai assim, para não demorar mais. Retomarei amanhã o trabalho de copiar. Estive, agora mesmo, a completar a revisão pelo Orpheu dos poemas que lá vie­ram. Mas, enfim, isto sempre foi um pouco apressado, embora não creia que vão muitos erros: na leitura das provas se fará o necessário para tudo ficar certo, ou, pelo menos, o mais certo possível.

Tive pena que a sua estada em Lisboa, aquando da sua conferência , coincidisse com alguns dias de maior invisibilidade minha. O Almada Negreiros disse-me que v. me tinha procurado, ou que me ia procurar – ele não esclareceu bem qual das coisas era –, mas, se v. me foi procurar em qualquer lugar onde eu costumo estar ou passar, ninguém me deu indicação a esse respeito. Isto me desculpará perante v. de qualquer lapso mais con­creto, se porventura houvesse ocasião de mo atribuir.

             Sempre e muito seu,

               Fernando Pessoa.

P. S. – Desculpe o atabalhoado desta carta, em to­dos os seus capítulos, máquinas de escrever diferentes, etc. À força de ter tantas coisas que fazer, todas ao mesmo tempo, estou com a alma não‑euclidiana. Outro dia serei (espero) de uma geometria mental mais da velha tradição.

2-4-1933 3-4-1933 4-4-1933

Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Europa-América, 1957 (2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982).

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