Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

Não me concebo amando, nem dizendo

Não me concebo amando, nem dizendo

A alguém «eu te amo», sem que me conceba

Sob uma outra alma que não é a minha

Toda a expansão e transfusão de vida

Me horroriza como a avaro a ideia

De gastar e gastar inutilmente,

Inda que no gastar se esboce gozo,

Um terror como de crime,

Uma frieza como ante o impossível

Tolhe a própria visão dum meu amor

Dentro em meu ser. Sentir amor, talvez,

Pois quem sabe o que está fadado

(...)  ;mas amar, amar,

Nunca... não só o horror de (...)

Mas o pudor de dizer o que sinto

E ser amante aos olhos e ouvidos

Duma alma consciente, o entregar-me

Eu, o mistério de uma consciência,

Ao mistério duma outra consciência.

O poder estar inerte e (...)

Que só concebo como meu.

A vida é o esquecer-se continuamente

Mas eu, nesta minha intensa vida,

Vivi em mim tão solitariamente,

Que não sei esquecer-me, nem tirar

De mim meus olhos d'alma; e em cada gesto

De amor que eu fazia, analisá-lo

Até lhe descobrir o horror e (...)

Da essência do mistério; e ao ver tão perto

Como entre minhas mãos o revelado

Horror de tudo, logo deixarei

A possibilidade de amar

Cair delas tremendo. Do universo

A alma misteriosa eu sempre atento

Em toda a parte vejo; se já estas

Inanimadas cousas que me cercam

Me dão, nas muitas horas em que as fito,

Não com os sentidos mas com a alma logo,

Directamente como com a vista,

Me torturam, no auge do terror

Pelo mistério que não são e são;

Quanto mais — oh horror de o conceber! —

Ao ouvir vozes íntimas de alma

De um ser amante — minhas ou para mim —

Ao ouvir assim perto, ao ver assim

Próximo da minha alma sempre atenta

Uma voz do mistério feito vida —

Quanto mais, como se a solução

Do mistério mesmo me turbasse

Até à morte de terror e espanto,

Não se me esfriaria em medo a alma

Ao ver em um olhar brilhar o horror

De haver consciência e existências.

Não é o acanhamento virginal

Que da própria luxúria se perturba,

Nem o ideal pudor, por delicada

A alma, do que em amar é grosseria

Inevitavelmente; não o medo

De ser inapreciado ou ser troçado;

Nem terror de impotência a Ser (...)

Me ocupa. É mais negro sentimento

Mais íntimo, mais frio e mais ligado

Ao que, de continuado pensamento,

Me é o que eu chamo a alma que é minha.

E isto

Decerto lograria a incompreensão

Que primordial não é no meu temer

E a troça da alma no olhar espreitando

E (...) de quem é

Diferente de todos e de tudo,

Como um universo à parte, grande nisto

Mas sem poder d'alguém ser entendido

Senão por louco, ou desvairado ou triste,

Injúrias de insuficiência e acanhamento

De compreensão.

s.d.

Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.

 - 93.

1ª versão inc.: “Primeiro Fausto” in Poemas Dramáticos. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de Eduardo Freitas da Costa.) Lisboa: Ática, 1952 (imp.1966, p. 22).