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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Cartas a João Gaspar Simões - 18 Nov. 1930 ]

Apartado 147.

Lisboa, 18 de Novembro de 1930.

Meu querido Gaspar Simões:

Desculpe não ter respondido ainda à sua carta de 7: não queria responder sem lhe enviar os meus folhetos de versos em inglês, e só hoje é que consegui desencan­tar o embrulho onde estavam. Envio-lhos por este correio, sob invólucro separado.

São os English Poems I-II (Antinous e Inscriptions) e III (Epithalamium), e os 35 Sonnets; não lhe envio a primeira edição do Antinous (1918, folheto igual aos 35 Sonnets), porque esse poema foi reconstruído e aper­feiçoado, dando aquele que abre os English Poems pos­teriormente publicados. Se, porém, tem qualquer inte­resse, de ordem bibliofílica, em ter também esse proto­ -Antinous, tenho exemplares, e posso enviar-lhe um. Diga.

Não sei, realmente, quais são os seus conhecimentos da língua inglesa; mas devo advertir que é preciso conhe­cê-la realmente para compreender o texto complexo e compacto desses poemas, e particularmente dos Sone­tos . Pode ser, porém, que a sua intuição e cultura artís­ticas, assim como o seu conhecimento de outros escritos meus, em português, supram o que me diz ser – não sei se com modéstia sublinhada – a sua débil ciência da língua inglesa.

Uma explicação. Antinous e Epithalamium são os únicos poemas (ou, até, composições) que eu tenho es­crito que são nitidamente o que se pode chamar obscenos. Há em cada um de nós, por pouco que especialize instintivamente na obscenidade, um certo elemento desta ordem, cuja quantidade, evidentemente, varia de homem para homem. Como esses elementos, por pequeno que seja o grau em que existem, são um certo estorvo para alguns processos mentais superiores, decidi, por duas vezes, eliminá‑los pelo processo simples de os exprimir intensamente. É nisto que se baseia o que será para v. a violência inteiramente inesperada de obscenidade que naqueles dois poemas – e sobretudo no Epithalamium, que é directo e bestial – se revela. Não sei porque es­crevi qualquer dos poemas em inglês.

Outra explicação, esta desnecessária. Os dois poe­mas citados formam, com mais três, um pequeno livro que percorre o círculo do fenómeno amoroso. E percor­re-o num ciclo, a que poderei chamar imperial. Assim, temos: (1) Grécia, Antinous; (2) Roma, Epithalamium; (3) Cristianidade, Prayer to a Woman's Body; (4) Im­pério Moderno, Pan-Eros; (5) Quinto Império, Anteros. Estes três últimos poemas estão inéditos.

Explicarei isto melhor, omitindo, porém, por não ser ainda a ocasião de a dar, a explicação da sucessão dos impérios e o seu íntimo sentido. O conteúdo dos poemas não é o que define os «impérios» a que eles se reportam. Assim, Antinous, que é grego quanto ao sen­timento, é romano quanto à colocação histórica. Epitlha­lamium, que é romano quanto ao sentimento, que é a bestialidade romana, é, quanto ao assunto, um simples casamento em qualquer país cristão; e o mesmo sucede com os outros três poemas, ou, antes, sucede indirecta­mente, pois nenhum deles tem colocação precisa no tempo, mas só no sentimento. Quando digo que os dois primeiros são os únicos poemas nitidamente obscenos que tenho escrito, não digo mal; os outros três poemas, excepto uma ou outra frase casual no terceiro, nada têm que se possa qualificar de obsceno.

Estou com muito interesse em ver o seu estudo na Presença. Basta que o veja aí; não é preciso, como numa outra carta me disse, mandar-mo antes de o publi­car. O título não me alarma nada, sendo certo, porém, que, de per si, não o compreendo definidamente. O es­tudo, contudo, mo explicará. Noto, aliás, que não dá o título como definitivo, mas como provável. Se ele define bem as conclusões do estudo, deve mantê-lo. Tem, com certeza, o dom de interessar.

Outra coisa muito diferente. Recebi, no dia 13, na minha caixa postal, uma carta sua (pelo envelope e letra nele) para o António Botto. Contra todos os precedentes, extraviei essa carta. Peço-lhe desculpa disso, e aviso-o, para que possa ter a maçada de escrever de novo. Não expliquei o caso ao António porque há uns quinze dias que o não vejo; a correspondência que vem para ele, para a minha caixa postal – e que pode sempre para ali ir, pois não costumo extraviar as cartas –, deixo-‑lha logo no Café Arcada, onde ele vai frequente­mente, mas a horas a que eu raras vezes posso ir.

Um grande abraço do seu amigo certo, admirador e obrigado,

                Fernando Pessoa.

18-11-1930

Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões. (Introdução, apêndice e notas do destinatário.) Lisboa: Europa-América, 1957 (2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional - ‑Casa da Moeda, 1982).

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