Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

Na Rússia — ao contrário do que se tem dito — continuam as perseguições...

Na Rússia — ao contrário do que se tem dito — continuam as perseguições políticas. Acaba de ser enforcado, por traidor, o coronel russo Miasoyedoff. Provou-se, com efeito, que ele era traidor. Estava vendido aos alemães, a quem inteirava de planos militares... Então em que é isto uma perseguição política?

Não nos deixemos sugestionar senão pela verdade. Examinemos o que seja uma traição.

Um traidor é simplesmente um individualista. A traição, longe de ser um acto condenável, não passa duma opinião política — filosófica, mesmo, como no fundo são todas as opiniões políticas.

A guerra é uma substituição, na moral e na acção, do critério inibitivo pelo critério expansivo. Toda a vida social, normalmente, se rege por princípios que têm por base a inibição da acção dos instintos, de modo que eles não prejudiquem os outros. Na guerra acontece o contrário. Ali os instintos são, organizadamente, desencadeados. O fundo humano da violência e combatividade aparece. Passa a ser legítima a solução animal das questões. Age só o egoísmo absoluto, a luta pela vida, descarnadamente. Só se trata de prejudicar os outros.

Ora um traidor é uma criatura que, por dinheiro ou outro interesse pessoal, compromete os interesses da pátria. Isto é, segue um critério egoísta, segue o instinto do lucro, de interesse pessoal. E isto vem a ser servir-se precisamente da mesma moral que a da guerra.

A sua divergência está em que dá a essa moral uma interpretação individualista, ao passo que a interpretação comum é solidarista. E uma questão de política ou de filosofia. Ora não se deve matar uma criatura por causa das suas opiniões filosóficas.

Mas, dirá um incauto, a traição, seja o que for, compromete a pátria, a colectividade; é um perigo enorme, que se não pode tratar de leve. Nesse caso deviam ser enforcados, como Miasoyedoff; os estadistas que lançam um país numa guerra de que ele não saia vencedor. Esses comprometem toda a pátria, de uma só vez, e não se pode dizer, como do traidor, que o fazem por uma interpretação filosófica da guerra, diversa da interpretação corrente. Fazem-no utilizando a interpretação corrente, o que é muito mais hábil, mas, por isso mesmo, muito mais imoral.

1915

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

 - 27.

Artigo inserido na coluna “Crónica da vida que passa”. in O Jornal, nº 12. Lisboa: 15-4-1915.