Concebendo a verdade só como católica romana,
Bandarra
Concebendo a verdade só como católica romana, nem compreendendo outro género de império que não o de guerra e conquista, era forçoso que os nossos maiores interpretassem as profecias do Bandarra, e outras semelhantes que nos atribuíam no futuro o Quinto Império, como designando-nos para chefes e verdadeiros universalizadores da Igreja Católica Romana, como conquistadores pelas armas, para ela e para nós, de toda a extensão do mundo. Não tinham luzes que lhes permitissem ver, que por Igreja Católica, ou Universal, outra coisa se podia designar que não uma Igreja que a si mesma se designando de Romana, com isso mesmo se condenava na matéria, e que por Império se pudesse entender o domínio sobre outros povos, porém não necessariamente o domínio deles pelas armas, ou por qualquer outra arte, a elas ligada, com que os antigos imperadores efectuavam o domínio verdadeiro de suas conquistas.
A tolerância é impossível ao crente verdadeiro de qualquer fé, sobretudo se ela excede os limites estreitos do feiticismo e da simples superstição, sem que atinja ainda o sincretismo dos pagãos e dos ocultistas. Quem tem a sua religião por verdadeira, e por certa só dentro dela a salvação das almas, não pode senão considerar como um crime de tal vulto, que excede todos os crimes deste mundo, o pregar outra religião, que não essa, ou o desviar dela aqueles que só nela terão sua salvação. Nada há pois que pasmar do espírito perseguidor dos inquisidores, dos puritanos, e de todos quantos têm deveras uma fé que supõem universal. Nem outra ordem de fé era possível a populações que viviam ainda num grau imperfeito de cultura e de civilização. Podemos lamentar os mártires dessas perseguições, como os das perseguições aos cristãos, fruto de um cuidado análogo, da segurança e da unidade do Império; mas nem devemos culpar os perseguidores como a criminosos, nem lamentar os mártires mais do que lamentamos aqueles sofrem as injustiças da sorte.
Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.
- 86.