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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

NEO-ROMANTISMO MONÁRQUICO

Neo-ro[mantismo] mon[árquico]

Outra tem de ser, por força, a atitude do sociólogo equilibrado. A observação lúcida, mesmo que não profunda, do fenomenismo social impõe, sobretudo, uma conclusão. Essa conclusão é decisivamente contrária àquela a que chegam os tradicionalistas.

O observador dos factos sociais constata, em primeiro lugar, que o fenomenismo das sociedades é extraordinariamente complexo. Causas de toda a ordem colaboram na produção de qualquer facto social. A toda a hora actuam nas sociedades factores de ordem económica, de ordem política, de ordem moral, de ordem estética mesmo; a cada momento encontramos as consciências individuais explicáveis apenas por complexos (e, por complexos, confusos) agrupamentos de razões económicas, intelectuais, morais. Quanto maior é a importância do facto social, maior é o número de causas a abranger para a sua explicação; mas, ao mesmo tempo, como que para nos compensar do nosso esforço em querer explicá-lo, mais nítido há-de ser o concurso dessas causas para que, colaborando, pudessem produzir um fenómeno de ordem importante e decisiva. A vida social quotidiana é feita de coisas instáveis, imprecisas, porque a multidão de causas que actua não age no mesmo sentido. Olhando de alto os factos culminantes da história humana, nós não os podemos compreender senão como tendo sido produzidos pela concorrência de factores diversos; é possível que esses factores, no fundo, se reduzam a um só, mas, para os fins práticos da sociologia, é escusado ir buscar esse factor, cuja determinação, de mais a mais, dando de barato que não constitua metafísica sociológica, é em todo o caso dificílima.

Um facto como a Revolução Francesa não pode, senão por um delirante, ser interpretado como causado por determinada filosofia, ou, mesmo, determinada política. Quando um facto social tem tal relevo, quando assim exprime todo um estado social, por força que há-de ser a soma, ou síntese, de toda uma série de causas várias, que, concorrendo, o produzem. Quando muito, se quisermos, por exemplo, atribuir a Rousseau a Revolução Francesa, temos de tornar o nome “Rousseau” num sentido especial, considerando nele, não a obra de um homem mas um fenómeno intelectual representativo e esclarecedor de ocultas correntes sociais, de ordem política, de ordem económica, de ordem moral. Dir-se-á que nunca nenhum dos tradicionalistas franceses ou portugueses quis insinuar (embora seja difícil não o crer) que Rousseau tinha sido autor da Revolução Francesa, no sentido em que se pode dizer que um assassino é autor de um assassínio. Mas o que é certo é que os tradicionalistas de que se trata, sempre têm falado como se tal fosse a sua crença; e sem dúvida ela é espontaneamente tal, pois que a sua ideação seja espontaneamente absurda.

No caso, que se citou para exemplo, só é permissível aludir a Rousseau como ao autor da Revolução Francesa, se se entender por isso que Rousseau é, já, o princípio da Revolução Francesa. Assim, sim.

Como os factos sociais, quaisquer que sejam as suas causas, são, no fundo, factos psíquicos, pois que se passem entre psiquismos individuais, é sempre permissível, e sempre elucidadora, a comparação com os factos que se passam na alma dos indivíduos; nem o processo oferece dificuldades ou perigos de maior, senão a quem não cure bem em não fugir das analogias impossíveis.

Em qualquer indivíduo, de carácter complexo (as sociedades não poderão nunca ser comparadas, pois que sejam complexas, a indivíduos de carácter simples), uma acção qualquer é o produto da combinação das suas faculdades. As acções de mínima importância (excluído, é claro, o caso de um indivíduo doentio) têm em geral uma causa simples. Mas as grandes acções da vida são resultantes de uma multidão de causas psíquicas. A importância da acção a praticar põe em jogo toda a atenção dos vários elementos componentes da psique do indivíduo; assim como a importância de uma acção social põe em jogo todos os elementos sociais.

É de medíocre lucidez qualquer dos processos modernamente seguidos para interpretar os fenómenos sociais — os processos, quero dizer, que reduzem a uma só causa todas as causas sociais. Tal é o chamado materialismo hístrico, que reduz tudo a causas económicas; tal, também, uma teoria, como a dos tradicionalistas, que atribuem a Revolução Francesa a causas puramente intelectuais. Na impossibilidade (pelo menos prática) de reduzir a uma só a causação social, temos que tomar em conta todas as causas, que nos pareça estarem agindo, e ver em que é que concorrem, em que é que se entravam. Daí poderemos explicar os resultados.

Agindo umas sobre as outras, as várias causas sociais vão assim criando uma unidade de direcção na vida da colectividade, de modo que dão a impressão de serem uma causa apenas. Tal sociedade, em tal época, ostenta determinada tendência económica, determinada tendência política, determinada tendência intelectual. Estas tendências (aliás já criadas por causações anteriores e complexas) interpenetram-se, misturam-se. Como a sociedade é uma, uma tem de ser a direcção geral da sua vida, embora múltiplas sejam as tentativas de direcção que nela se esbocem.

Não há uma causa apenas na vida de uma sociedade em certo momento; o que há é uma sociedade apenas.

Assim a Revolução Francesa. Ela é um produto complexo das doutrinas dos enciclopedistas, da situação económica da plebe francesa, da corrupção política do antigo regime monárquico. As três causas entreactuam. Como a situação económica terrível dessa plebe cria uma revolta virtual, esse espírito de revolta aceita dos enciclopedistas o que o favorece e afasta o resto. Aceita o anticatolicismo de Voltaire, e espontaneamente rejeita o seu aristocratismo. Aceita de Rousseau a sua sentimentalidade anticonvencional, mas não todas aquelas partes (nem sempre secundárias) da sua doutrina, que iriam contra essa revolta virtual. Por seu lado, as causas políticas...... (and quote what doctrines are non-accepted from Rousseau).

Se houvesse o mal-estar económico do povo francês sem que existisse, concomitantemente (e efeitos da mesma causa), a incapacidade política do tempo, a revolta, dando-se, tomaria outro rumo que não o rumo antimonárquico, que tomou. Se não houvesse a doutrinação dos enciclopedistas, mesmo que a revolta tomasse um carácter antimonárquico, não tomaria o carácter que tomou, porque não teria as teorias, que teve, a seu serviço. Mas, na realidade, estas causas colaborantes já estavam imixtas, umas nas outras, antes de se definirem como tais. A teorização de Rousseau e dos enciclopedistas já representava sentimentos que, sem a noção do mal-estar do povo, não seriam, pelo menos tão nitidamente, representados. A incompetência política dos governantes da França pré-revolucionária não existiria, pelo menos àquele ponto, se houvessem sido mais fáceis os problemas económicos a resolver; nem portanto haveria a revolta latente contra essa incompetência política. Sem a incompetência política não haveria a desgraça económica, que houve. Sem a incompetência política não nasceria tão nitidamente nos enciclopedistas a ideia destrutiva, de que conduziram os lábaros. Assim, cada fenómeno social nos aparece como, ao mesmo tempo, causa e efeito de qualquer dos outros fenómenos. Que interpretação tem isto?

Só pode ter uma: que, por detrás de todas estas causas concorrentes, está uma causa única de que elas são manifestações, por cuja interacção constante, esse íntimo fundo nacional mais e mais se define e se realiza. Que realidade fundamental é essa? Seja o que for, é o que constitui a realidade essencial da vida social. Mas não há interesse em investigar o que seja. Não o há, porque, para o sociólogo prático, não é o fundamental, o inatingível que importa; é as suas manifestações — é através dessas manifestações que o político pode agir sobre esse fundo irredutível e insaisissable da sociedade.

Mas estas causas, que estudámos, têm, ao menos, uma gradação, quanto a importância? Importará mais a causa económica que a política, a política que a intelectual — ou, vice-versa, em qualquer dos casos?

O que vemos que diferencia essas causas é a amplidão que têm. A causação económica atinge a grande maioria da população. A causação política, uma minoria mais restrita. A causação intelectual, uma minoria pequena. Há uma ascensão. A causação intelectual não age, directamente, sobre o factor económico. Age mediatamente, através do factor, intermédio, político.

(Não se pode alegar que esses três factores não cooperavam. Cooperavam; para mal, para a destruição social, mas cooperavam. Todos destruiam. As várias forças sociais cooperam sempre; não podem deixar de cooperar. O incooperante liquida, porque não age.)

É de medíocre interesse prático procurar saber em que consiste, fundamentalmente, essa má direcção social. Quer seja numa dissolução de vínculos sociais, ou outra coisa qualquer, não importa.

O que se trata de saber é como agir para modificar.

(No fundo, é claro, há um determinismo fatal, que leva as sociedades para certo destino. Mas, pragmaticamente, não podemos pensar nesse fim. Temos que crer na possibilidade do esforço, visto que não conhecemos o futuro.)

Apesar, porém, de atingir toda a sociedade o facto económico,

e o facto intelectual uma pequena parte, não se deve julgar que o

factor intelectual não altera, mesmo como intelectual, o fundo económico. Descendo dos teoristas aos políticos, e dos políticos à

maioria sobre quem é primária a pressão económica, a teoria vai tomando formas diversas, deformando-se para se adaptar. Vai ganhando uma forma colectiva. Por sucessivas reascensões aos teoristas vai gradualmente tomando uma forma mais nítida como teoria ao serviço das causas económicas, e, redescendo, vai tornando cada vez mais precisa, conforme possível, a noção das coisas que a maioria tenha. Chega-se a um ponto em que há uma conformidade quase perfeita, tão perfeita quanto é possível, entre a teoria dos teoristas aceites e o sentimento das massas: é o momento da acção social. A sociedade atingiu, então, aquilo a que rigorosamente se pode chamar um estado religioso, porque formulou uma teoria que tem todos os característicos de uma religião, desde a base intelectual até ao sentimento fundamental.

Com que fenómeno social se parece esse estado? Com o fenómeno religioso. Com efeito, não há, no fundo, na vida das sociedades, outra coisa que não fenómenos religiosos. A Revolução Francesa foi um fenómeno religioso.

Não se diga que há entre as nações de Rousseau e de um camponês uma diferença fundamental. A mesma diferença há entre a noção de Deus que tem um teólogo católico e a que tem um camponês tão católico como ele. O fenómeno religioso é isto. Na realidade, o espectáculo a que assistimos é a lenta agonia, talvez do cristianismo, por certo da religião católica. São vãs todas as pretensas “renascenças” da fé, tão vãs como os movimentos de aparente vitória do paganismo, desde que o cristianismo entrara a dominar o império romano.

Ora, viremos o problema. Se tudo é essencialmente religião e fenómenos religiosos, se a mudança social é essencialmente apenas mudança de ideias religiosas, então, determinando nós o que é, essencialmente, a religião teremos determinado qual o fundo mutável das sociedades.

Ora uma religião é essencialmente (1) uma metafísica, (2) uma moral, (3) uma série de ritos (?)

Nada admira que Racine ou Corneille seja mais disciplinado do que Victor Hugo. Aquelas almas estreitas e secas o que é que têm que disciplinar? Muito pouco. Parcos de ideação metafísica, pobres de emoção lírica, que grandeza há em que tenham aquele frio equilíbrio que acompanha, salvo no caso de loucos, a ausência de emoções e de ideias que o perturbem? Que há para admirar em que um indivíduo, que não tem tendências alcoólicas, domine a tendência para o álcool? Que há de honroso ou de forte num indivíduo de temperamento frio e calmo em dominar aqueles impulsos de cólera ou de sensualidade que não existam nele? Se quisermos ver se a época pré-romântica foi forte, foi disciplinada, vamos ver como foram, em matéria de disciplina, aqueles que realmente tiveram emoções fortes, aqueles que na verdade foram ricos de ideias. Temos um Aggripa d'Aubigny; será este mais disciplinado do que Hugo? Temos um Pascal: será este desordenado e grande espírito mais disciplinado do que qualquer filósofo romântico? Temos, em plena época de influência clássica, em Inglaterra, um Shakespeare; pondo de parte a grandeza, Shakespeare será mais conexo, mais disciplinado do que Hugo? E Rabelais, e Montaigne, que nasceram ainda bem longe da corrupção romântica? Se diferença há, é toda a favor dos românticos. Salvo em dois casos — o de Dante e o de Milton......

O argumento contra o romantismo porque seja indisciplinado cai, pois, pela base. As criaturas ricas de ideias e de emoções são sempre temperamentalmente indisciplinadas. O romantismo mostra uma riqueza de vida muito maior do que a dos magros e pobres clássicos. Que admira que seja maior a indisciplina entre os românticos? À medida que o romantismo avança, caminhar-se-á para a disciplina. Os próprios escritores da Action Française, com o seu ímpeto anti-romântico, fazem, neste sentido, embora eles próprios românticos, uma obra útil.

Disciplina deveras, houve-a só na Grécia antiga, e, em grau menor, em Roma; entende-se disciplina com emoções ricas, que valesse a pena disciplinar. E que, livres ainda do peso bárbaro do cristianismo, esses puros espíritos pagãos tinham ainda a noção da ordem e do equilíbrio, que Cristo veio tirar. E tinham a riqueza da sua imaginação, a liberdade das suas ideias. A sua religião era, em grande parte, só exterior.

1915

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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