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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo...

E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo...

— O dilúvio de Deus e o bebé loirinho boiando morto à tona de água,

Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva,

E a vasta humilhação de existir um amor taciturno —

Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte,

Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria —

Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma —

A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim.

Meus versos são a minha impotência.

O que não consigo, escrevo-o;

E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia.

A costureira estúpida violada por sedução,

O marçano rato preso sempre pelo rabo,

O comerciante próspero escravo da sua prosperidade

— Não distingo, não louvo, não (...) —

São todos bichos humanos, estupidamente sofrentes.

Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo,

Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho,

E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim.

Meu coração esquife, meu coração (...), meu coração cadafalso —

Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim.

Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos,

Bebedeira da servilidade altruísta,

Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo...

s.d.

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

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