Anatole France - Não, não era um diletante.
Anatole France
Não, não era um diletante. Prouvera aos deuses que o fora! Anatole France era apenas um diletante amador. Tinha do diletante (excepto no que diz respeito à doença cancerosa, o comunismo, de que sofria) o cepticismo, que nasce de se saber que todas as doutrinas são igualmente defensáveis, valendo cada uma, não o que vale, senão o que vale o defensor; a curiosidade, que sabe que em tudo há tudo; e ,aquela flor suprema da cultura a que se chama o humanismo, assim definido, uma vez para sempre, por Pater. (...)
O diletantismo verdadeiro vai, porém, adiante da simples curiosidade pela superfície de tudo: desce à essência das coisas, e é passageiramente intenso e sincero com cada uma delas. O grande diletante vive profundamente, com o pensamento e com a emoção, todos os aspectos que pode da realidade ilusória. Dilettanti foram Goethe e Shakespeare, nem há diletante maior que este, que viveu os tipos mais diferentes de humanidade com igual esplendor de imaginação e de inteligência.
Anatole France, porém, não tinha grandes qualidades nem de pensamento, nem de sentimento, nem de imaginação. Para ser superficial faltava-lhe fundo; para ser passageiro, faltava-lhe demorar-se, para pensar tudo, faltava-lhe pensar, para sentir tudo, sentir, para imaginar tudo, imaginar.
Foi uma espécie de fêmea do diletantismo. Tinha um estilo admirável, posto que sem originalidade; é o estilo médio do estilo superior francês. Desde Pascal está assim. Tinha um admirável senso estético, o que frequentemente acontece às mulheres — nas coisas em que não é muito importante ter um senso estético.
Não: o grande nome de diletante não pode ser dado a Anatole sem um adjectivo restritivo. Para este baixo mundo moderno, inapto para a especulação metafísica — sendo por isso que faz metafísica só em sociologia — , pobre e estreito de sentimentos — sendo por isso que repugna o romantismo — e parabúlico nas suas decisões, Anatole France é a figura exactamente representativa, e de aí a sua popularidade. É o melhor que há na ausência de bom. Encheu as medidas da modernidade culta. Essas medidas são centilitros.
Alguma coisa porém contribuiu para a criação do estado estético da inteligência, que é o máximo a que ela pode atingir — para nos curar do vício da convicção, da mania da sinceridade, da estupidez de tomar a sério um mundo que os deuses, que o dirigem, não tomam a sério nunca.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
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