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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Quando não tivesse o valor que lhe é próprio e directo,

Quando não tivesse o valor que lhe é próprio e directo, como feito científico e tentativa heróica, o voo oblíquo transatlântico dos dois aeronautas portugueses teria, ainda, a vantagem de nos ministrar, não só em si, como nas suas consequências no país três ensinamentos diversos.

O primeiro, que é aquele que se deriva do próprio acto, é mais simbólico que evidente. É como que um sinal celeste, porque aéreo, do ressurgimento do país. Neste facto, que, se civilizacionalmente vale pouco, nem pode ser comparado com a grandeza imperial e fatídica das descobertas, cientificamente vale muito e humanamente bastante, regressa subitamente à superfície da vida aquele tipo de feição espiritual que caracterizou e definiu os homens que estabeleceram pelos descobrimentos o nosso império transitório. Sir Peter Wyche, falando no século XVII dos portugueses, disse que eram «tão notáveis pelo estudo do empreendimento, como pela bravura de empreendê-lo». (Digo melhor que ele, porque o assunto pede mais literatura que ele podia dar-lhe. Mas a substância da sua frase não desaparece da minha interpretação.) O certo é que o português apareceu na civilização como homem harmónico, mente segura e planeadora, braço apto a realizar o que ele próprio planeou. Reunia a audácia e a ciência que torna a audácia mais alguma coisa que um impulso animal de quem não vê. Diferia nisso do francês, alheio por natureza a esta harmonia, capaz só de planear sem grandeza, ou de ser grande sem plano, sendo por isso que o Destino, quando quis dar à França um chefe a um tempo grande e lúcido, teve que ir buscar-lho à Itália. Diferia nisso do italiano, científico, astuto, frio, sem entusiasmo nem afeição pelo entusiasmo, porque o tipo moderno do italiano, de Garibaldi a Fiume, é uma ficção e um arremedo, imitado do francês e sem graça nem personalidade. Diferia também do inglês, prático mas não científico, audaz ou grosseiramente ou elegantemente, porém nunca pensadamente, pelo menos no fim se não no acto, da audácia. Só o alemão de Bismarck conseguiu introduzir de novo na civilização europeia, se bem que num nível inferior, porque a organização de um simples império não vale a organização de uma expansão imperial baseada [...]

Depois este português desapareceu. Veio o português à “antiga portuguesa” que não é à antiga portuguesa — bom católico, toureiro, estúpido como uma porta de cofre-forte.

Este em seu tempo passou também; vem o português do século XIX, intrujado (?) pela política desnacionalizante.

A meio do século passado o antigo tipo português começou, por qualquer razão misteriosa, a reaparecer. Reapareceu na literatura, porque a acção não lhe era propícia. Reapareceu principalmente com três grandes nomes — Antero de Quental, Cesário Verde e Junqueiro. Em Antero, se bem que só no campo literário, o regresso do tipo português antigo é já nítido: a profundeza do pensamento alia-se à graça da forma, não por acréscimo, mas por fusão orgânica. Em Junqueiro, como em Pascoaes depois, baixa o nível, talvez não da poesia, por certo da realização, porque um não tem profundeza real de pensamento e o outro não tem segurança artística, senão ocasional. Este aparecimento é decerto um bom agouro; a larga intuição de Sampaio Bruno de certo modo o viu, na crítica à “Pátria”., inserta em O Brasil Mental . O aparecimento de filosofia (verdadeira filosofia) em Portugal, com Leonardo Coimbra e Raul Leal, é outro indício do regresso desse tipo português, aplicado agora em outro sentido.

Tornaram a aparecer condições propícias para a manifestação do português antigo, se ainda algum existisse. Tem a ciência muitos ramos, mas em só dois deles se podem casar a novidade científica e a bravura pessoal. São eles a exploração polar e o estabelecimento científico da direcção aérea. O primeiro caso, porém, é mais de persistência e de tenacidade do que de ciência ou de propriamente arrojo. Estava o segundo pela primeira vez desde as descobertas marítimas, feitas contra a hipótese de mares negros e povoados de monstros, nas condições naturais de ter que aparecer um português a executá-lo. E dois portugueses apareceram. Este aparecer à chamada da hora europeia tem um sentido simbólico enorme. O facto, repito, não é civilizacionalmente grande; nada tem que se compare com os descobrimentos; este feito pode estabelecer a navegação aérea em bases firmes, aquele transformou a face do mundo, criou um novo tipo de império, abriu a amplitude da terra à possibilidade conjunta daquela civilização que até ali se não sonhara senão concentrada na Europa, ou pelo Mediterrâneo, ou até à Ásia Menor.

O segundo ensinamento, que este voo notável nos ministra, aparece-nos nas suas consequências, não já em ele próprio. É o da incompetência dos elementos actualmente representativos de Portugal, primeiro, para homenagearem esse acto, segundo para sequer compreendê-lo, terceiro para poder compreendê-lo.

Esta ausência de senso estético, de senso intelectual, por vezes mesmo de senso moral, deriva-se, como fenómeno colectivo da ausência de senso nacional. Com efeito, quem não tem da própria personalidade, com quem convive constantemente, uma noção aproximada e lúcida, que noção pode ter das outras coisas?

Ora desde a entrada da dinastia de Bragança que se tomou notável a ausência do tipo português, o desaparecimento da psicologia do português da superfície da terra. Houve sempre, graças a Deus, patriotas de Portugal; portugueses, deixaram de haver.

Quem não tem a consciência certa das raízes profundas do seu ser, isto é, do povo a que pertence, de que coisa pode ter certeza ou noção?

Isto indigna e revolta. E merecia o castigo do único jornalista que há em Portugal, porque assim sem nome se pode escrever o nome do Sr. Homem Cristo.

Não é só porém a simples falta de educação e de senso estético, a simples baixeza de sentimentos, que se revelou a propósito destas homenagens. Revelaram-se também as causas desses baixos sentimentos, que são a falta de visão civilizada, e falta de instinto português.

Um exemplo — mais dolorosamente flagrante pela sua constância e pela sua inconsciência — é o modo como na linguagem da tribuna e da imprensa se empregam, para elogio de contemporâneos de relevo mínimo, os nomes maiores da nossa história. Qualquer Afonso Costa (e há tantos) é o Marquês de Pombal do século XX. Qualquer Couceiro é um Nun'Álvares. A reles entrada na guerra europeia que fizemos, como serventuários da Inglaterra e lacaios da França — que é o que com efeito somos, e por isso estava certo — trouxe comparações relembrando os descobridores e os homens que escreveram o nome português a sangue eterno de leste a oeste do Mundo

Quando um dia um colaborador ocasional do «Mundo» comparou França Borges a Nun'Álvares chegou-se ao limite. De resto, como N. A. [Nun'Álvares] difere qualitativamente tanto de Couceiro como de F. B., [...]

O que há de reles e de desgracioso, porque de inarmónico, no português de hoje, tal qual os princípios liberais e outros o criaram, revela-se assim constantemente. Abre-se um jornal monárquico, colhe-se uma referência à triste figura nacional que foi El-Rei D. Carlos, cujo reinado denotou o báratro da decadência do desleixo, e do dissídio; e em que termos se referem esses jornais ao Senhor D. Carlos? Em termos que quem não visse o nome por certo julgaria destinados a referir-se a El-Rei D. João II. Um estrangeiro, ignorante de todo da nossa história, facilmente pensaria que o período daquele rei fora o do apogeu das nossas descobertas ou da grandeza do nosso império. Os mortos merecem, ao menos, o respeito do nosso pudor ao falar neles. Quando mais não haja, haja isso. Que se diria de quem enaltecesse, em elogios tristes, a grandeza de Antero de Quental como poeta épico, ou falasse da profundeza filosófica de Bernardim Ribeiro?

Paiva Couceiro não escapou [a] ser comparado a Nun'Alvares. O grande Condestável é, de resto, de uma infelicidade enorme. Qualquer homem que combate qualquer coisa com qualquer relevo passa logo a merecer aos nossos referentes a designação do grande chefe militar medieval.

Estes homens merecem ser tratados de modo diferente dos políticos e dos ocasionais que andam pelas esquinas de serem conhecidos a mendigar homenagens indirectamente. Não se trata de um Afonso Costa ou de um Lopes Vieira, que nasceram para viver dos aplausos externos dos outros, porque, se não fosse para isso, para que teriam nascido?

Esta gente é gente.

Com o Soldado Desconhecido, facto de menor alcance patriótico, e consagração que começava por ser plagiada de consagrações idênticas estrangeiras, o mesmo sucedeu. Em todo o caso, e apesar de a nossa entrada na guerra europeia ter sido realizada em condições de deselegância suprema, que conseguiram tornar a tragédia de tantas vidas perdidas um episódio reles de política partidária, a piedosa natureza da homenagem devia ter dado para mais alguma coisa que o lixo em que deu.

Houve o cuidado de despertar de todas as maneiras o instinto supersticioso do povo. A superstição é apenas o receio de infringir leis desconhecidas do universo. E como quase todas as leis do universo, e por certo as fundamentais, nos são desconhecidas, todo o cérebro são é naturalmente supersticioso. Quem reconhece, por instinto ou por inteligência, que em verdade nada sabe do mundo em que vive, nem das forças que o movem, nem de como os destinos se talham, quem, com o instinto ou com a razão, reconhece que a vontade humana é um pobre fumo sobre que sopram ventos vindos da noite, por força que há-de ser supersticioso.

De todas as maneiras se fez despertar, no sentido de criar receio, a superstição do povo. Estava a travessia em meio e já se organizavam festas para quando por inteiro se realizasse. Este delírio da esperança dos parvos cresceu com a chegada aos Rochedos, porque fora, na verdade, a demonstração absoluta da segurança da direcção e o ponto onde a travessia começava a estar feita deveras.

Deu-se ao avião o nome fatídico de Lusitânia, contra pedidos e protestos.

Os poetas menores, os relevos das forças vivas, tudo isso que fica longe de ser tudo, os porteiros de todas as consagrações, os fixos em todas as homenagens, não faltaram, porque um dos seus característicos é não faltar, mesmo onde não são nem desejados nem próprios.

Armaram arcos, puseram bandeiras, prepararam festas, não tanto para consagrar o já feito, embora muito, mas para se consagrar o que estava por fazer, lembrando agoureiramente aquela célebre medalha que Napoleão mandou cunhar para celebração da sua invasão de Inglaterra, que nunca se realizou.

De tal modo têm consagrado os [...]

As plebes da inteligência cercaram de tal modo os dois aviadores que ninguém pôde chegar até eles sem arriscar a sujar-se na travessia. Deram um tom tão definitivamente grosseiro às homenagens — com uma falta de senso estético, e mesmo moral, tão inconscientemente aflitiva — que quem quisesse prestar homenagens apropriadas aos dois marinheiros teria que desistir, como terá desistido. Não é a emoção da plebe, que tem a elegância do acto instintivo, que desmerece da aprovação da inteligência. É o desajeitado da outra plebe, daquela que, como disse o escritor francês, « inclui muito boa gente», que prejudica para sempre.

Desvirtuado assim tudo, não há senão que protestar, com o conhecimento antecipado da inutilidade do protesto.

E assim foi rebaixado, ante o país e o estrangeiro, um feito digno de glória porque grande, de admiração porque heróico, de respeito porque patriótico. Dois homens que haviam posto em empreendê-lo uma soma de grandes qualidades, a que não faltava a da modéstia e submissão instintiva ao que o Destino quisesse fazer do que eles queriam fazer, foram postos no escárnio da publicidade comercial para servir os interesses de dois jornais intelectualmente desprezíveis e nacionalmente abaixo de adjectivos. Todo o voo transatlântico se tornou um acto de propaganda do Século e do Diário de Notícias. Quem poderia acreditar que o mais pequeno intuito patriótico tinha conseguido forçar aquelas portas de ferro com que as empresas do género daquelas se defendem das solicitações da inteligência e da nobreza? Um, o primeiro, propriedade de um estranho e envolto sempre no roupão roto de campanhas financeiras sem elevação nem escrúpulo; outro, servo de uma plutocracia sem pátria, porque a plutocracia por natureza a não tem — parasitam.

Habituados a consagrar no mesmo tom tipográfico os actores, os políticos do lixo, os nossos homens representativos encontram-se desapercebidos de qualquer noção de valores que possa orientá-los na consagração de um acto realmente grande. Tendo empregado os adjectivos máximos nos mínimos, têm que aplicar aos máximos os mesmos adjectivos que já estão mínimos.

Se houvesse nesta gente um resto de equilíbrio mental, o simples conhecimento da sua nulidade própria teriam encontrado sem dificuldade um modo decente de fazer esta consagração, sem prejuízo dos seus adjectivos e da subgente a quem costumam aplicá-los. Teriam sido sóbrios na narrativa, como sóbrios no seu empreendimento foram os dois aviadores. E de homenagens, a prestar no fim da viagem concluída, ou de qualquer modo fechada, teriam encarregado um ou dois dos homens que valem ainda intelectualmente por Portugal — um Junqueiro, um Pascoaes, na oratória um João Arroio.

Não terá ocorrido aos directores desses «Borda-d'Água» diários que há coisas para que não têm competência? Tão alto será o conceito em que têm a sua palavra, falada ou escrita, que a julguem própria para todas as ocasiões, adequada a todos os gestos?

Imagine-se que amanhã acontecia em Portugal um feito mais alto (porque qualitativamente diferente) do voo transatlântico. Como o consagrariam? Quem o consagraria?

[...]

Antes disso, só no Império Romano se encontra uma tão justa harmonia entre as qualidades de planear e as de executar; porém com esta diferença, que o que os Romanos planearam e executaram estava dentro do imperialismo de sempre, era a conquista e a ocupação sábia, a administração ordenada, sendo de novo ali só a perfeição da ciência administrativa e a notável aplicação à prática da cultura grega e dos seus resultados, ao passo que no império português o elemento cultural, a ciência, era própria, como a execução. Assim tivemos que empregar os três elementos do plano — a ciência, a teoria da prática, e a prática.

Além do valor que lhe é próprio e directo, como feito científico e tentativa heróica, tem ainda o voo oblíquo transatlântico dos aeronautas portugueses a vantagem de nos ministrar, não só por si, mas também pelas suas consequências, três ensinamentos diversos.

O primeiro, que é aquele que se deriva do próprio acto, é mais simbólico que evidente. É como que um sinal celeste, porque aéreo, do ressurgimento do país.

1922?

Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.

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