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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

PROBLEMA IBÉRICO [ b]

1. Qual é o fim que se pretende com a “aproximação“ ibérica de que se fez agora campeão o Sr. Felix Lorenzo, director de “O Imparcial”? De três coisas, uma deve ser verdade. Ou se pretende apenas estabelecer uma amizade firme entre os dois povos que a história tem até aqui apartado espiritualmente (e mais ainda apartado depois do período em que os juntou); ou se pretende tentear terreno para a velha e conhecida táctica da absorção de Portugal por Espanha; ou se busca, deveras, preparar as coisas sociais para um futuro acordo que, sem ser uma mera amizade, também não represente uma absorção, mas seja, em todo o caso, qualquer coisa que estadualmente aproxime a Espanha e Portugal.

2. Sem curar de ver qual das hipóteses é que verdadeiramente a campanha espanhola tem em mente, procuramos ver qual a base que há para qualquer delas. Critique of the first elsewhere.

3. Que viabilidade tem a tentativa de uma aproximação dos dois países? Problema a estudar sociologicamente; (a) a unidade da Ibéria — a sua peninsularidade, (b) o local histórico de fusão do elemento romano com o árabe, (c) os dois países presos à mesma nota do passado, pela sua comum acção na abertura do Novo Mundo à civilização. Neste três pontos assenta a unidade da civilização ibérica, porque, por mais separados que os dois povos estejam ou se sintam, são rodas no mesmo eixo, que, por longe que estejam uma da outra, são parte do mesmo movimento e têm o mesmo sentido de direcção.

4.  Se a Ibéria é assim, transcendendo os povos que a compõem, uma unidade civilizacional, é evidente que está na lógica natural das coisas que um apartamento verdadeiro prejudica cada elemento componente — ou, antes, que devia ser componente — dessa unidade.

5. Esta unidade essencial é, porém, acompanhada de diferenças enormes nos pontos secundários. Escusamos de lhes buscar as causas, como buscámos as da unidade essencial. Porque é escusado buscar as causas àquilo que é patente: Portugal não quer ser espanhol, nem de uma forma, nem de outra. Dos ódios que a história semeia, o ódio do português ao espanhol imperialista é o único que ficou, porque o contra os franceses que nos invadiram sob Napoleão, e o contra os ingleses que nos lançaram o Ultimatum célebre, já passaram ambos e se desradicaram de nós.

Ora esta existência de divergências muito grandes, longe de ser coisa que prejudique a ideia implícita (para o estadista) na íntima unidade civilizacional ibérica, antes a reforça e a torna mais aceitável. Porque todo o organismo é superior na proporção em que a sua unidade essencial é interpretada e realizada por funções diferenciadas. Quanto mais elevado é um organismo na escala dos seres vivos, mais diferenciados são os órgãos que o compõem, e maior a interdependência das suas funções. Por isso, dada a unidade fundamental que a natureza (pelo território e pela história) deu à Ibéria, e dada a paralela diferença entre povo e povo que a compõem, somos levados, não à conclusão que essa unidade é impossível, mas, ao contrário, que, sendo possível, será produtora de resultados sociais (civilizacionais) notabilíssimos, por isso que, conseguida a unidade orgânica, a divergência grande das partes componentes tenderá a fazer essa unidade altamente produtora de civilização.

Esplêndida coisa foi que a história, que nos fez nascer unos, tanto tempo nos separasse, para que, unindo-nos, constituíssemos uma unidade civilizacional como a unidade vital de um organismo superior, e não uma unidade inferior, como a França, ou como a Alemanha. (E, ainda assim, o longo tempo que a Alemanha esteve em estados separados, muito a separou, e lhe condicionou a superioridade que atingiu. Mas ali houve o pecado da hegemonia prussiana...)

Posto, pois, que deve tender-se para uma qualquer unidade ibérica, no mesmo momento fica posto que essa unidade deve ser constituída por povos o mais divergentes possíveis dentro dessa unidade. Desaparece logo, como absurda, como ibericamente criminal, toda a tentativa que se queira esboçar de absorção de um país por outro, como criminal resulta, também logo, a absorção (fictícia, aliás) da nação catalã por Castela. Por que chegamos finalmente à visão integral da confederação ibérica.

s.d.

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

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