Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

A acção civilizacional, pela qual dominámos de leste a oeste da terra,

A acção civilizacional, pela qual dominámos de leste a oeste da terra, portugueses e espanhóis, e criámos a América, não foi senão um desvio necessário do nosso imperialismo nativo. Entendamo-nos. Foi um desvio da nossa ibericidade comum. Não foi um desvio da nossa errada existência separada de Portugal e Espanha. Portugal, no que apenas Portugal, tinha, a construir um imperialismo, que construir um imperialismo marítimo, baseado naquelas descobertas que a sua situação geográfica lhe impunha, a que a sua situação geográfica o crucificava. Espanha, no que apenas Espanha, tinha que seguir esse movimento, num sentido, e, ao mesmo tempo, criando um imperialismo, expandir-se para o lado da Europa. A personalidade dispersa da Ibéria expandiu-se, então, em duas direcções: na direcção do imperialismo colonialista, criado então, e na direcção do vulgar imperialismo de domínio, que Filipe II realizou. A própria dupla direcção imperialista implica, ilustra, a íntima dispersão da personalidade natural da Ibéria península. O facto de cairmos — nós, portugueses — sob o domínio espanhol, estava escrito no género de imperialismo que havia aparecido na península. Gerado na península um imperialismo de conquista e de expansão, como não havia ele de surgir dentro da península; e, surgindo adentro da península, como não surgir no povo maior e mais apto a dominar por isso mesmo que não era o povo dos descobridores, mas o que — a própria situação geográfica o indica!— devia seguir às descobertas com a conquista. Foi uma inevitável divisão de trabalho que foi funesta para Portugal.

O que mostra, porém, ao mesmo tempo que a acção civilizacional do antigo Portugal e da antiga Espanha estava errada ibericamente é que, de todo esse imperialismo marítimo, colonial e europeu, não surgiu um imperialismo cultural. Sim, portugueses e espanhóis, dominámos aquém e além-mar; mas nunca houve uma civilização comum a nós dois. É a demonstração plena de que os nossos imperialismos não representavam uma expressão perfeitamente natural, hígida, dos fins rácios imanentes. Há um imperialismo alemão, mas há também uma cultura alemã, coisa inconfundível e vincada. Há um imperialismo francês (ou houve, datando da Revolução), e nas próprias ideias dessa Revolução, somadas às do anterior ancien régime, há uma coisa a que se chama cultura francesa. Há um imperialismo inglês e há (embora muita gente o não saiba) uma coisa extraordinariamente nítida chamada a cultura inglesa, que se manifestou, na sua acção europeia, pela política. Qual era o conteúdo cultural da expansão portuguesa ou da expansão espanhola? Tipicamente nenhum. Havia o catolicismo; mas esse era estrangeiro, e não era novo.

Isto, porém, leva-nos mais longe.

Visto que, apesar de nações separadas, tivemos uma acção imperialista, podemos ser imperialistas. Visto que separados, essa acção imperialista resultou incompleta (porque nunca floresceu em uma cultura ibérica, ou separadamente espanhola e portuguesa), a termos um verdadeiro imperialismo, devemos tê-lo conjuntamente, ibericamente. Visto que, criando um imperialismo colonial e europeu, nada conseguimos, de nosso, que não fosse apenas proveitoso para outros povos [...] deve ter outro sentido o nosso imperialismo conjunto.

O nosso passado imperialista deve servir-nos para nos dar o orgulho em que o imperialismo se baseia. Como a tradição do velho império alemão alimentou aqueles românticos alemães modernos por quem o orgulho alemão, renascendo, veio, nas mãos de Bismarck, a criar o grande império actual; assim, façamos da noção orgulhosa do nosso antigo domínio a base para o nosso diferentíssimo domínio futuro. E como o imperialismo alemão actual nada tem de comum com o outro, salvo o ser um império; também o nosso imperialismo futuro nada tenha de comum com o passado, salvo o ser imperialismo. Rejeitamos, na sua realização recordada, a lição do passado; aceitamos o espírito do que fomos para renascermos. Deixemos descer à vala o corpo dos impérios que tivemos; ressuscitemos o seu espírito, no que orgulho, ânsia de domínio, glória de expressão.

Uma das coisas necessárias é desfazermo-nos de todos os elementos do passado que possam pesar sobre a nossa delineação cultural. Devem desaparecer as colónias portuguesas. As colónias portuguesas são uma tradição inútil. Nós não temos o direito de ter colónias. Na nossa mão, elas não nos servem, não servem aos outros, e pesam sobre nós, alimentando uma tradição funesta, que foi bela enquanto foi glória inútil, porque foi glória; mas tendo deixado de ser glória, ficou sendo inutilidade apenas.

Que o imperialismo seja a nossa tradição; e não o imperialismo colonialista e dominador!

Possamos dizer, reproduzindo num sentido local as palavras com que Nietzsche fecha o “Anti-Cristo”:

Desde este dia, em toda a Ibéria,

Transformação de todos os valores!

        (end)

s.d.

Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

 - 25.