14 DE MAIO
14 DE MAIO
Vendo que o Rei era a pessoa em quem estava na realidade todo o poder, João Franco decidiu, para obter o poder, conquistar o Rei. Comprou-o mediante a chamada «liquidação dos adiantamentos» e mediante a promessa de aumento da lista civil. Foi de uma absoluta lucidez n'este ponto.
João Franco foi ao poder como representante das classes médias do país. O seu primeiro erro era inevitável; além de representar a estas, tinha, para se segurar no poder, de representar as classes propriamente conservadoras — reaccionárias mesmo —, o que com tanto menos custo fazia, quanto o seu temperamento a isso o levava. Levou consigo um grupo de administradores e de inteligentes como não tem, recentemente, nenhum partido monárquico ou republicano. Isto como representante das classes-médias. Mas como representante das classes conservadoras levou consigo, também, elementos altamente reaccionários cuja acção era perniciosa.
Com liberalismo salvava a monarquia e radicava-a. Mas se fosse liberal, perdia grande parte do seu apoio. Nem, mesmo, por feitio, podia ser liberal.
Pimenta de Castro foi o mais puro representante das classes-médias que foi ao poder em Portugal. Reflectiu perfeitamente a sua ânsia de paz, de tolerância e de liberdade. Caiu.
A aliança, no papel de combate ao governo, de republicanos, dissidentes, regeneradores e progressistas, no período da ditadura franquista, é dos fenómenos de mais interesse para o sociólogo, que se podem encontrar. Ele é de uma alta importância. João Franco foi um criador de Ordem e de Disciplina. Ergueu contra si toda a indisciplina e toda a desordem. A linha de evolução era do rotativismo para a república — porque entre os rotativos e os republicanos havia semelhanças radicais. João Franco foi um desvio. Pimenta de Castro foi outro desvio. Só a desordem pode mandar em Portugal. (Domina sempre, em qualquer país, o partido que consiga organizar os elementos mais representativos do estado actual d'esse país, o partido que consiga organizar-se no sentido da atitude, ao momento, do psiquismo nacional.) N'um país anarquizado quem domina é o partido que consiga organizar a anarquia.
J[oãoJ Franco e P[imenta] de Castro falharam pelas seguintes razões:
(1) Representando as classes-médias — o que estava bem — representavam classes ainda não organizadas para apoiar esse seu representante. Em ambos os casos havia apoio parcial, como o conjunto do comércio ao ministro Schroeter; como o voto da Associação dos Proprietários apoiando o general Pimenta de Castro. Mas, nas classes-médias em geral não houve, nem há, organização política coerente. Não há partido burguês em Portugal — partido, realmente constituído, que possa apoiar um homem de governo que no poder represente, espontaneamente, essas classes.
(2) Representavam sobretudo uma secção das classes médias directamente. J[oão] Franco era representante directo [da] parte conservadora (reaccionária, mesmo) das classes médias. P[imenta] de Castro representava sobretudo o exército, a oficialidade. Por isso mesmo que essas classes médias não estavam organizadas no seu conjunto, só a parte organizada podia mandar ao poder um homem seu.
(3) Essa pequena representatividade levou qualquer dos ditadores a procurar criar-se um apoio. Isso levou-a a transigências perigosas; perigosas, claro está, sob o ponto de vista da táctica política. Assim, J[oão] Franco não podia deixar de servir os reaccionários. Caiu por causa d'isso. P[imenta] de Castro não podia deixar de servir os monárquicos, as elites nos comandos, para ver se as integrava na República.
Com uma apta organização das classes médias tudo isso seria inútil. O problema político principal, entre nós, hoje, é, pois, a organização política da burguesia.
Até aqui, por causa (1) das condições políticas do país, (2) da não-organização das elites burguesas, tem-se posto o carro antes dos bois. Ambas as ditaduras burguesas quiseram obter 1º o poder para depois criarem apoio.
Vimos que as classes médias devem dominar, que não é esse o caso porque não estão organizadas para isso. O 1º problema imediato da política portuguesa é, pois, a organização política das classes-médias.
Vimos que quem domina hoje em Portugal é tudo quanto seja representativo da anarquia, da desonestidade, da incompetência e da inércia; que esse domínio se apoia em (1) teses revolucionárias importadas da França; (2) o estado social (e político) de coisas criado pela monarquia — arrebanhamento na inércia das populações rurais; (3) o estado de coisas criado pela república revolucionária — arrebanhamento na destruição e no barulho das populações citadinas.
Vimos, finalmente, que não há maneira de obter o poder em Portugal, hoje, senão à força. O terceiro problema imediato da política portuguesa é, pois, organizar a contra-revolução.
Estes três problemas ligam-se n'um só, que é problema nacional imediato:
destruir a destruição, (...)
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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