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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O fado cantado à guitarra

O fado cantado à guitarra

Tem um som de desejar.

Vejo o que via o Bandarra,

Não sei se na terra ou no ar.

Sou cego mas vejo bem

No tempo em vez de no ar.

Goze quem goza o que tem.

A nau se há-de virar.

Canto às vezes sem dar voz

Como penso sem falar.

A cegueira que Deus me pôs

E um modo de luz me dar.

Vejo claro quanto mais deixo

O corpo cego às escuras.

Rogo pragas, mas não me queixo.

As pedras são todas duras.

Vejo um grande movimento

Em roda de uma árvore alta.

Das estrelas no firmamento

Há a mais nova que falta.

A preguiça (?) anda de rastos,

Os mortos gemem na cova.

Os gados voltam aos pastos

Quando desce a estrela nova.

Lei[o] no escuro os sinais

Do Quinto Império a chegar.

O Bandarra via mais,

Mas Deus é que há-de dar

Sinto perto o que está longe,

Quando penso julgo que fito,

Meu corpo está sentado em hoje

Minh'alma anda no Infinito.

Ando pelo fundo do mar,

Pelas ilhas do avesso,

E uma coisa que há-de chegar

Tem ali o seu começo.

Há no fundo d'um poço em mim

Um buraco de luz para Deus.

Lá muito no fundo do fim

Um olho feito nos céus.

E pelas paredes do poço

Anda uma coisa a mexer.

Rei moço, lindo rei moço,

Só ali te posso ver!

Meu coração está a estalar,

Minha alma diz-lhe não.

Vejo o Encoberto chegar

No meio da cerração.

Vendidos à Inglaterra,

Caixeiros da França vil,

Meteram a gente na guerra

Como num cesto aos mil.

Este vem trôpego e cego

Lá das Flandres e das Franças,

Só para o Leotte do Rego

Endireitar as finanças.

Este, que aos muros se encosta,

Veio doido lá da tropa,

Só porque o Afonso Costa

Queria ser gente na Europa.

Anda o povo a passar fome

E quem o mandou para a França

Não tem barriga para o que come

Nem mãos para o que alcança.

Metade foi para a guerra,

Metade morreu de fome.

Quem morre, cobre-o a terra.

Quem se afoga, o mar o some.

Ninguém odiava o alemão.

Mais se odiava o francês.

Deram-nos uma espada para a mão

E uma grilheta para os pés.

É inglesa a constituição,

E a república é francesa.

É d'estrangeiros a nação,

Só a desgraça é portuguesa.

E a raça que descobriu

O oriente e o ocidente

Foi morrer de balas e frio

Para a cama dos Costas ser quente.

Mas a verdade há-de vir,

O mal há-de ser descoberto

E Portugal há-de subir

Com a vinda do Encoberto.

Hão-de rir dos versos do cego;

Hão-de rir mas hão-de chorar,

Quem não for o Leotte do Rego

E tiver Pátria a que amar.

M[ija]ram na pia da Igreja,

Escreveram na porta do Paço

É em linha recta de Beja

Que está quem traz o baraço.

Era dez réis por cada homem

Para o Chagas ter fato novo.

Cada prato que eles comem

É tirado da boca do povo.

Quem é bom nunca é feliz,

Quem é mau é que tem razão;

O Afonso vive em Paris

E o Sidónio está num caixão.

Pobre era Jesus Cristo

E ainda o puseram na cruz.

De dentro de mim avisto

O Princípio de uma luz.

Um dia o Sidónio torna.

Estar morto é estar a fingir.

Quem é bom pode perder a forma

Mas não perder o existir.

Depois de quarenta e oito

Quando o sol estiver no Leão,

Há-de vir quem traga o açoite,

Até os mortos se erguerão.

Não riam da minha praga,

Os que viverem verão

Porque toda a Bíblia acaba

Na visão de S. João.

Sou cego mas tenho vista

Com os olhos de ver no escuro.

Falta o melhor da conquista

Que é ver para lá do muro.

Falo na minha guitarra

Só com o meu coração,

Vejo o que via o Bandarra

E no fim há um clarão.

Vejo o Encoberto voltar,

Vejo Portugal subir,

Há uma claridade no ar

E um sol no meu sentir.

Por que mesmo quem não acredita

É preciso acreditar;

Quando a gente endoidece de aflita,

Até se abraça ao ar.

Até que para o lado da barra

Há-de vir um grande clarão,

E voltar, como diz o Bandarra,

El-Rei Dom Sebastião.

No seu dia veio o segundo,

No outro será o terceiro,

Se o segundo foi para o fundo,

O terceiro será o primeiro.

Eu não quero nenhum estrangeiro,

Francês e inglês é o demónio,

Cuidado com o Terceiro

Que não é o Pimenta ou o Sidónio.

Logo que a Lua mudar

De onde não mostra valia,

No meio do meio do ar

Há-de aparecer o dia.

Na sua ilha desconhecida

O Encoberto já vai acordar.

Inda tem a viseira subida

E o ar de dormir a pensar.

Seu olhar é de rei e chama

Pela alma como uma mão.

Não é português quem não o ama.

Viva D. Sebastião!

Minha esquerda é a direita

De quem corre para mim.

Do futuro alguém me espreita,

Portugal não terá fim.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

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1ª versão: Poesia Profética, Mágica e Espiritual. Fernando Pessoa. (Poemas estabelecidos e comentados por Pedro Teixeira da Mota.) Lisboa: Ed. Manuel Lencastre, 1989.