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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Carta a Geraldo Coelho de Jesus - 10 Ago. 1919]

Geraldo:

Espero que v. terá já recebido a minha carta de ontem, e o meu telegrama de hoje, que dizia assim:

«Urgente. Administrador Minas Porto de Mós. Êxito jornal enorme/quanto aos incidentes Rossio leia jornais de hoje/escrevo carta. Fernando.»

O caso foi o seguinte: O êxito foi verdadeiramente grande, e tivemos a sorte espantosa de por causa do nosso jornal ter o Rossio em estado de sítio. Isto deve v. saber pela leitura dos jornais da manhã de hoje; todos se referem ao caso, mas (caso lhe escape), deve v. notar que «O Jornal» se lhe refere em um suelto, elogioso para nós, e «O Mundo» tem três referências — o primeiro suelto na segunda página, a primeira notícia da Última Hora, e um apontamento entitulado «Propaganda sidonista», que vem a meio da terceira página. É deliciosa, como amostra dos processos jornalísticos, aquela notícia de «A Manhã», onde se pretende não ter visto o jornal e que as palavras «Ou sidonismo ou bolchevismo» vêm impressas em caracteres grossos por baixo do retrato — e o leitor com isto fica julgando (leia v. a notícia e aprecie) que o que queríamos dizer era que havíamos de pôr cá ou sidonismo ou bolchevismo. A descoberta de «O Combate», de que havia no jornal 3 retratos do Sidónio também não é má.

Por toda a parte o jornal se vendeu espantosamente. Contou-me hoje de manhã o chefe da venda que houve tabacarias que pediram 5 exemplares, em tom de desdém, e vieram meia-hora depois pedir cinquenta. A «Mónaco» recebeu ontem 900, em vários pedidos. E há casos inúmeros de interesse. Por exemplo: Como se haviam esgotado os exemplares que levavam para distribuição às lojas antes de o distribuidor chegar à «Havaneza do Socorro» (que é na esquina da Rua da Palma para a Rua de S. Lázaro), esta tabacaria não recebera ontem jornais. Eu passei por lá, e como levasse ainda onze dos vinte e cinco que trouxera comigo, deixei lá dez. Hoje, como quis ir ao «D[iário] de N[otícias]» às oito da manhã, passei antes da tabacaria estar aberta, mas soube por um empregado, que ali estava à espera que o patrão abrisse a porta, que no momento depois de eu sair, e quando ainda o patrão tinha os jornais na mão, se venderam dois. Isto é perfeitamente típico do que tem acontecido. Quando vim do «D[iário] de N[otícias]» fui comprar tabaco à «Tabacaria Inglesa», do Cais do Sodré, para onde não tinham mandado ainda; estive lá uns dois minutos, e entraram três indivíduos a pedir a «Acção»; é claro que remeti imediatamente o dono da loja para a casa de venda do «Diário de Notícias».

Quando cheguei à casa de venda do Notícias, fui recebido com enorme entusiasmo pelo chefe da venda, pelo fiscal e outros, incluindo um sidonista que desconheço. Estavam todos entusiasmados, como se fossem crianças, com o escabeche que tinha havido na véspera à noite.

Na redacção, onde fui em seguida, soube que tinha aparecido um indivíduo indignadíssimo porque dois marinheiros lhe tinham rasgado um número do jornal, que estava a ler. Deixou a morada e nomes de testemunhas; as três testemunhas são os indivíduos que escreveram a carta que vem na «Época» de hoje; o que a carta não diz que é um d'eles pregou uma formidável descompostura no cabo de marinheiros que rasgou o jornal. Fui hoje a casa do indivíduo que fez a queixa na redacção; afinal vim a falar com ele na Rua do Jardim do Regedor. Imagine v. que é um engraxador, um rapazito de uns 17 anos; contou-me como a coisa se passou e disse-me que tinha em casa todos os três números do jornal, que coleccionava. Realmente estas coisas chegam a ser enternecedoras. Tenho aqui no escritório o número rasgado, que ele deixou na redacção, como recordação.

Não sei se o jornal terá que fazer segunda edição: é assunto para decidir amanhã. V. compreende: pode dar uma venda grande, e contudo não esgotar a existência. O chefe de venda calcula entre 1000 e 2000 o número de exemplares queimados pelos vários formigas no Rossio. Depois se verá. (Devo dizer que me parece que vários tipos fizeram do jornal «bandeira», isto é, andaram agitando o retrato do Sidónio por toda a parte, e foi naturalmente qualquer coisa d'essas que fez nascer a ideia de dar cabo dos exemplares a alguém).

Em suma: um grande êxito, e creia v. que O JORNAL ESTÁ LANÇADO.

Agora são precisas as seguintes coisas:

1. Arranjar outra redacção: uma redacção definitiva, por assim dizer, ou então uma redacção constante de uma mesa de pinho e um banco em um quinto andar, para poderem ir lá destruir aquilo. Digo isto porque tenho um projecto esplêndido, mas arriscado, para o número 4. V. nem calcula o que é!

2. Organizar a empresa do jornal.

3. Fazer um número 4 sensacional e forte, e um pouco menos «revista» do que estes têm sido, tendo só de pesado o fim do meu artigo «A Opinião Pública».

Para tudo isto eu precisava falar maduramente com v. Quando é que v. vem? Ou, não podendo vir v., poderia eu ir aí, sem ter que ir no comboio?

Outra coisa, e sem relação nenhuma com o jornal: Quando se arranjar a «redacção definitiva», v., como naturalmente não quer ficar com os quartos da actual redacção, deixe que eu fique em lugar de v. Gostava de morar ali, porque é um lugar muito mais agradável do que a casa onde moro, e onde sinto a opressão dos espaços demasiado pequenos.

Vou amanhã à redacção às 11 horas, para orientar a empregada na dobragem dos jornais, etc. O jornal tem que ser dobrado ao contrário, com a primeira página para dentro, para o não roubarem no correio; a cinta também não deve levar carimbo da «Acção».

Os democráticos que eu conheço estão indignadíssimos comigo. Um, que foi secretário do Leonardo Coimbra, manifestou-se-me muito desgostoso (é bom rapaz e tem por mim consideração) por lhe constar que eu não só «era da Acção», mas andava mesmo a fazer as vezes do director.

Em todo o caso, ninguém diz mal do jornal senão por qualquer razão política; há, é claro, uma excepção — o Numa.

Bom, agora mais nada. O que houver de interessante, contarei. Escreva para o Apartado (147).

Um grande abraço do

10-8-1919

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

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