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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

A vida nacional portuguesa sofre hoje dos resultados…

A vida nacional portuguesa sofre hoje dos resultados de uma tripla ruptura de equilíbrio. A primeira ruptura deu-se com a entrada da decadência — onde quer que ela se queira colocar, antes, por, ou depois de Alcácer Quibir. A segunda ruptura de equilíbrio deu-se com a implantação do constitucionalismo, que quebrou a tradição política nacional, sem construir nada de naciona1 que substituísse o regime nacional deposto.

A primeira ruptura de equilíbrio e a que se dá em todas as decadências — a ruptura da relação hígida entre governantes e governados, estado social em que os governantes, embora por acaso possam governar bem, governam, em todo o caso, sempre fora de relação interpretativa com o geral do povo que governam. Essa ausência de interpretatividade da parte dos governantes explica-se com facilidade. O primeiro fenómeno das decadências é a perda de coesão social; e o resultado primário da perda de coesão social é a degenerescência do patriotismo. Não que o patriotismo desapareça, mas passa do estado dinâmico constante para o estado estático. Só uma forte convulsão de origem externa o desperta; sem isso, o geral do povo desinteressa-se da Pátria, desinteressa-se dos governantes, e acabam as classes por se desinteressarem, tanto quanto é economicamente possível, umas das outras. O resultado é uma decadência integral, que progressivamente atinge [...]

A restauração de 1640 fez-se por uma revolução aristocrática, que o povo apoiou, mas em que não colaborou activamente.

O erro do Marquês de Pombal consistiu em destruir o poder da aristocracia sem criar outro ponto de apoio para a realeza, que assim ficou suspensa no ar, fora de relação com o país. De nada valia, dado esse erro fundamental, fomentar indústrias, auxiliar comércio, promover a disciplina do exército. A obra passaria com o homem, como, com efeito, passou. Vítima do erro intelectualista do século dezoito, Pombal julgou que se pode governar sem atender aos elementos instintivos e subconscientes, que, como a ciência hoje sabe, são a parte fundamental do psiquismo humano, e, sobretudo, do psiquismo colectivo, criado por interrelação de instintos, e não por contacto de inteligências.

Quebrada a relação entre governantes e governados, o que se seguiu é inteiramente deduzível desse simples facto. Os governantes, perdido o contacto com a tradição nacional, sem apoio nas realidades psíquicas que são o fundamento da vida da nação, passaram a viver mentalmente do estrangeiro, mas, como a quebra de contacto com as realidades nacionais envolve uma quebra de contacto com a única fonte de inspiração original, passaram a viver bastardamente e artificialmente do estrangeiro, impotentes para criar novas ideias, servos submissos da primeira mesquinharia francesa, súbditos reles da hipnose do de-lá-fora.

O povo, a massa governada da nação, quebrado o seu contacto com aqueles cuja função é estabelecer o progresso e estimular o esforço, caíram no baixo tradicionalismo — no tradicionalismo que não é um apego às grandezas passadas, porque as grandezas passadas nenhum povo por educar as pode ter presentes senão por lhas lembrarem os seus governantes; mas no tradicionalismo de gleba e tarro, o apego de animal à canga usada, o afinco de vegetal à terra a quem nasceu pegado. Desnacionalização (baixa) nos governantes; supertradicionalização nos governados; tal o estado em que nos encontrávamos, e em que nos encontramos.

 Encaremos, antes de mais nada, com as três realidades sociais, pelas quais se tem de guiar todo o homem que busque criar coisas sociais. A primeira é a lei da continuidade histórica; a segunda é a lei dos escóis; a terceira é a lei do equilíbrio, ou, antes, da representatividade.

C. H.— Nenhuma nação se pode transformar senão em várias gerações. As revoluções nada transformam, apenas trazem a transformação. A Revolução Francesa atrasou o povo francês perto de cinquenta anos; o seu único produto visível mais próximo foi (curiosa ironia) meramente literário, e, ainda assim, o romantismo francês, primeira obra positiva da Revolução, surgiu, antes de mais nada e apesar de sofrendo da indisciplina mental que essa revolução causou, como reacção contra essa Revolução.

O gado russo, aqueles animais a que se chama o povo russo. Há alguém que, a sério, julgue que a Revolução Russa transformou alguma coisa de fundamental? O Império do Czar vivia em anarquia governativa, em analfabetismo de letras e de energias; crê alguém que o bolchevismo eliminou a anarquia, crê alguém que o bolchevismo eliminou a tirania, crê alguém que o mero aparecimento de uns pobres cérebros românticos a mandar, sem a preparação científica para o pensamento ou para a acção [...]

Os bolchevistas são cristãos sem religião; têm a mentalidade cristã, acreditam no milagre, porque julgam que uma sociedade se transforma de um dia para o outro, ou de um [...]

[...]

Justiça? A Justiça é a mais estúpida das ilusões. A única justiça é [...]

A mentalidade operária é, como é de esperar, essencialmente cristã; como o havia de ser, se as plebes são herdeiras de séculos sobre séculos de educação cristã, e se a ciência é coisa que um cérebro popular não pode atingir? A base da doutrina cristã é «Liberdade, Igualdade, Fraternidade»; este lema "revolucionário" foi promulgado pelo ocultista cristão Claude de St. Martin, discípulo do judeu português Martins Pascoal. Não se diga que o cristianismo não cumpriu este lema; não o cumpriu porque não é possível cumpri-lo. Nem o cumpriu o revolucionarismo moderno, nem o cumprirá nunca. O desconhecimento das leis que regem a vida das sociedades é o facto primordial da mentalidade moderna. E, por último absurdo, temos estes pobres homens acreditando ainda no dogma cristão do livre arbítrio; julgam que um homem é livre, quando a primeira coisa que a ciência aponta é que um homem é escravo; julgam que podem alterar a face da natureza humana e acabar com o velho homem humano — porco, sensual, estúpido, patriota e proprietário [...] o homem como ele é e não como o cristianismo laico dos radicais e dos bolchevistas o quer fazer.

s.d.

Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Fernando Pessoa (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução organizada por Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1979.

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