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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Aqui está-se sossegado,

Aqui está-se sossegado,

Longe do mundo e da vida,

Cheio de não ter passado,

Até o futuro se olvida.

Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,

Seus olhos riam no fundo.

Mas invisíveis serpentes

Faziam-a ser do mundo.

Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.

Que longe a vista se perde

Na solidão a tornar

Em sombra, o azul que é verde!

Sim, poderia ter sido...

Mas vontade nem razão

O mundo têm conduzido

A prazer ou conclusão.

Sim, poderia ter sido...

Agora não esqueço e sonho.

Fecho os olhos, oiço o mar

E de ouvi-lo bem, suponho

Que vejo azul a esverdear.

Agora não esqueço e sonho.

Não foi propósito, não.

Os seus gestos inocentes

Tocavam no coração

Como invisíveis serpentes.

Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.

Que tem sido a minha vida?

Velas de inútil moinho —

Um movimento sem lida...

Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.

Tudo está certo depois.

Mas a dor que nos desola,

A mágoa de um não ser dois —

Nada explica nem consola.

29-3-1929

Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990).

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