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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

PASTORAL DE PEDRO

PASTORAL DE PEDRO

Não sei onde te vi nem quando. Não sei se foi num quadro ou se foi no campo real, ao pé de árvores e ervas contemporâneas do corpo; foi num quadro talvez, tão idílica e legível é a memória que de ti conservo. Nem sei quando isto [se] passou, ou se se passou realmente —porque pode ser que nem em quadro eu te visse —, mas sei com todo o sentimento da minha inteligência que esse foi o momento mais calmo da minha vida.

Vinhas, boeirinha leve, ao lado de um boi manso e enorme, calmos pelo risco largo da estrada. Desde longe — parece-me — eu vos vi, e viestes até mim e passastes Pareceste não reparar na minha presença. Ias lenta e guardadora descuidada do boi grande. O teu olhar esquecera-se de lembrar e tinha uma grande clareira de vida de alma; abandonara-te a consciência de ti própria. Nesse momento nada mais eras do que um (…)

Vendo-te recordei que as cidades mudam mas os campos são eternos. Chamam bíblicas às pedras e aos montes, porque são os mesmos, do mesmo modo que os dos tempos bíblicos deviam ter sido.

É no recorte passageiro da tua figura anónima que eu ponho toda a evocação dos campos, e a calma toda que eu nunca tive chega-me à alma quando penso em ti. O teu andar tinha um balouçar leve, um ondular incerto, em cada gesto teu pousava uma ave; tinhas trepadeiras invisíveis enroscadas no (...) do teu busto. O teu silêncio era o cair da tarde, e balia um cansaço de rebanhos, chocalhando, pelas encostas pálidas da hora o teu silêncio era o canto do último pegureiro que, por esquecido de uma écloga nunca escrita de Virgílio, ficou eternamente encantado, e eterna nos campos, silhueta. Era possível que estivesses sorrindo; para ti apenas, para a tua alma, vendo-te a ti na tua ideia, a sorrir. Mas os teus lábios eram calmos como o recorte dos montes; e o gesto, que deslembro, de tuas mãos rústicas engrinaldado com flores do campo.

Foi num quadro, sim, que te vi. Mas donde me vem esta ideia de que te vi aproximares-te e passares por mim e eu seguir, não me voltando para trás por te estar vendo sempre e ainda? Estaca o Tempo para te deixar passar, e eu erro-te quanto te quero colocar na vida — ou na semelhança da vida.

s.d.

Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982.

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"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.