Havia dias que andava exaltado, turgido de alma.
Havia dias que andava exaltado, turgido de alma.
Lembrou-lhe de repente que alguma coisa havia de significativo em ele das duas vezes que se quisera suicidar, ter falhado. Não haveria ali oculto fim, senão directa indicação da Providência, fosse como fosse? Não lhe indicava isso que ele devia viver, que tinha o dever de usar a sua compaixão, a sua mágoa pela infelicidade humana [?] Era - com que nitidez percebia agora a indicação providencial das circunstâncias - uma missão que lhe era imposta na vida, na terra, no sistema do mundo... Missão como a de Buda, como a de Cristo, de paz, de clemência e amor... Os seus sonhos antigos, eram - com que saliência explicativa o via agora - previsões e não sonhos ou desejos... Talvez o martírio o esperasse; ainda bem... Sentia-se forte, audaz para combater o mal...
Vinham-lhe lacrimosamente grandes impulsos de ternura humana, em que, a sós no quarto, passeando excitado de lado a lado rompia em longo e sincero choro ao pensar nas criancinhas sem pão, nas criancinhas condenadas a ser prostituídas, nas injustiças do mundo... Assomavam-lhe então loucas e desmedidas ambições de ser um novo Cristo, de pregar no mundo com toda a intensidade do seu amor, a piedade para com todos, o amor sublime e eterno da triste e sofredora humanidade... Via-se, em visões de lucidez quase objectiva, o Messias de uma fé nova, a mesma ainda assim do que o cristianismo, como que uma ressurreição dele, via-se pregando e comovia-se ao ouvir o que nessa visão dizia, imaginava-se enfim desdenhado e perdoando, odiado e amando os que o odiavam, - com que nitidez d'alma se via dando o pão ao seu inimigo, velando à cabeceira do leito da filha pequenina de quem o esbofeteara, dando esmola a quem ele já sabia que o havia de trair. Instintivamente reconstruía em si a história de Cristo para sua, e, olhando em si finalmente o seu longo martírio, mais longo, mais humilhante e mais doloroso do que o do Nazareno, rompia em lágrimas ardentes e consoladoras de piedade por si mesmo futuro, de longo e abrasado amor pela humanidade inteira... Deitava-se enfim, sentindo-se consolado e triste das lágrimas que chorara, a testa ardendo, os olhos em fogo, as faces contraídas mecanicamente para chorar mais, quase chorando alto em fim, feliz e triste do doloroso amor ardendo no seu coração.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 25b.«Marcos Alves»