Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

[Carta a Ophélia Queiroz - 28 Maio 1920]

Meu Bebé pequenino, minha Nininha:

Acabo agora mesmo de receber e de ler a tua carta de ontem. Apoquentou-me muito, por tua causa, o que me contas, e que eu já esperava que sucedesse, não só por o que tu mesma me tinhas contado, como também por ontem o Osório me ter dito que o rapaz estivera ontem mesmo de manhã no escritório da Rua da Assunção. O rapaz foi lá a título de perguntar por mim, e, como eu não estava, fez ao Osório várias perguntas, se eu te namorava, etc., e disse-lhe que me tinha visto contigo, etc., etc.

Naturalmente, se me queria falar, era para qualquer coisa da tal intriga que tu me contaste que ele dizia que faria com coisas que iria contar a qualquer novo namorado teu. Ou, o que é mais provável ainda, foi lá ao escritório sabendo já que eu lá não estava, para, a título de perguntar por mim, fazer ao Osório as tais perguntas.

Seja como for, por mim o assunto não me interessa, e muito menos o rapaz; mas apoquenta-me o que essas trapalhadas e tolices dele te ralam, quer directamente, quer por o que ele disse a teu pai e te vem ralar por intermédio de teu pai.

Vamos aos pontos principais da questão:

Está muito bem, ou quase, o que a tua irmã te aconselhou que dissesses a teu pai. Por esse lado, nada te posso aconselhar, que tua irmã te não tenha aconselhado já. Para a história ficar completa, e ser inteiramente coerente,

resta que acrescentes ao que vais dizer a teu pai o seguinte — que não andavas constantemente comigo na rua, e que só uma ou outra vez o tinhas feito. Desculpa-te nisto comigo, se quiseres; que, encontrando-me indo na mesma direcção, era natural nem mesmo poderes recusar, se quisesses, que eu te acompanhasse. É bom dizeres a teu pai que uma ou outra vez te poderiam ter visto comigo quando estavas no Dupin, mas que nessa altura então era a coisa mais natural deste mundo, porquanto, à hora em que saías para almoçar, vindo para casa da tua irmã, acontecia muitas vezes vir eu de casa e passar pelo Cais do Sodré e Rua do Arsenal, onde compro todos os dias jornais ingleses. Isto, dito com jeito (para ressalvar caso de o rapaz ter dito, ou poder vir a dizer, a teu pai, que já antes de estares em Belém eu andava contigo, e, portanto, antes da ocasião em que vais dizer que eu me declarei). Compreendeste bem, Bebé?

Agora, quanto ao rapaz. Este, coitado, dá-me certa vontade de rir, e confesso que chego a ter certa pena do estado mental em que ele deve andar. O rapaz não me preocupa, mas preocupa-me, sim, o que ele te pode ralar. Vou dizer-te o que deves fazer para cortares as vasas ao rapaz.

Como ele te ataca por teu pai, deves indispor teu pai contra ele. Não é preciso nem mentir nem intrigar. Dizes simplesmente duas coisas a teu pai, e tens que dize-las de modo que teu pai tome bem nota delas. A primeira é contar-lhe o que o rapaz te ameaçou de fazer, de desmanchar por intrigas qualquer novo namoro que tivesses, intrigas essas feitas falando ele com o teu novo namorado. Aponta bem a teu pai que essas intrigas só podem ser uma difamação a teu respeito, e pergunta-lhe se acha isso bonito, se se põe do lado de quem te vai difamar, e, estás certa, já te está difamando, visto que começou (mais ou menos) com algumas mentiras falando com ele (teu pai) e que por certo continuará essa campanha contra ti, mais à vontade, com outras pessoas, estranhas à tua família, e a quem pode dizer coisas que não se atreveria a dizer a teu pai. Compreendeste? Isto dito com jeito , cala com certeza no ânimo dele.

A outra coisa é perguntares a teu pai quem te defende de qualquer desfeita que ele te faça indo tu sozinha na rua, visto que a atitude e as ameaças dele te levam a recear isso. Faz-te, a este respeito, muito cheia de medo. Nestes casos, e para com um pai, nada melhor que exagerar, dizer que quase tens medo de sair só com receio que ele te faça qualquer partida; que é impossível viveres nesse receio, etc., etc.

Isto, é claro, não adianta nada pelo que me diz respeito a mim, mas adianta no sentido de atrasar o rapaz.

Compreendeste também, Nininha pequena?

Farei o possível por passar hoje às 7 1/2. Mas o dia é mau para isso, pois tenho que estar em casa cedo para voltar à Baixa às 9 horas, o que hoje tenho que fazer; e, agora sem carros, tudo tem de ser feito com uma grande margem de tempo para ir de um lado para o outro. Nem tempo tenho para dizer mais coisas que te queria dizer nesta carta.

Ficam para outra carta.

Milhares de beijos do teu, sempre e muito teu

Fernando

28/5/1920

28-5-1920

Cartas de Amor. Fernando Pessoa. (Organização, posfácio e notas de David Mourão Ferreira. Preâmbulo e estabelecimento do texto de Maria da Graça Queiroz.) Lisboa: Ática, 1978 (3ª ed. 1994).

 - 21.