CARTAS DE MARCOS ALVES
Cartas de Marcos Alves
Levei a vida toda a sentir-me inadaptado mesmo às suas coisas mais altas e [a] adaptar-me a todas, mesmo, às mais reles. Assim criei uma dupla personalidade, da qual ambos os ramos são falsos. Por isso me não encontro. Por detrás do homem de espírito e um pouco de sociedade, sou o artista morto, e não o sou realmente. Vendo o que quis ser, o que me julguei plenamente capaz de ser, e atentando no que hoje irremediavelmente sou, uma angústia enorme, como a de ter perdido a alma, [...], sobe-me à cabeça.
Nunca me senti senão através de uma ideia de mim.
Tudo o que amei cedo ou tarde me veio a ferir (...)
Cortei todos os laços comigo próprio; hoje nada me amarra a mim a não ser o sentimento de dever estar amarrado. Só me sinto um ao atentar que sou, pelo menos, dois.
Pergunta-me v[ocê] como ando [?] [...] nisto - nisto de ser o cavaqueador brilhante, o triunfador das atenções... Perdendo-me. Cada pedra com que construí a m[inha] reputação de blagueur, de artista (...), de (...) - tirei-as ao muro, hoje desgastado, com que me vedara do não-eu. Hoje não tenho alma. Vendi-a a mim próprio, a troco de moeda falsa, beijos comprados, amizades inúteis, admiradores desprezíveis, inimigos que me esqueceram.
Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
- 25c.«Marcos Alves»