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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Ricardo Reis

São de três espécies os erros vulgarmente cometidos...

São de três espécies os erros vulgarmente cometidos na interpretação moderna do paganismo. Ou se confunde paganismo simplesmente com a sua manifestação politeísta; ou se toma por paganismo determinadas práticas religiosas que nele havia, certos ritos, certas cerimónias; ou se confunde paganismo com as teorias de determinadas escolas filosóficas que nasceram do terreno pagão.

Na mera enunciação de quais são os erros verá o leitor que eles são erros, e compreenderá logo a que interpretações especiais me reporto. Não desejo, porém, que me não entendam, e por isso, aumentando estes preliminares mais do que competiria para a perfeita proporção do assunto, passo a esmiuçar um pouco mais as razões a que me atenho.

O erro central na interpretação moderna do paganismo consiste em que, como é natural, mas, posto que natural, erróneo, não concebemos nunca o paganismo senão consciente ou inconscientemente contrapondo-o ao sistema cristão. Como nascemos adentro do psiquismo cristista e esse psiquismo se consubstanciou com o nosso, individual, não nos libertamos nunca completamente dele, e, quando menos nos receamos, mais certa posse ele tem de nós.

Decorrendo desta viciação nuclear do problema interpretativo, são de três espécies (supra).

Como se verá depois, quando houvermos afastado os obstáculos, chegado à definição do assunto, o paganismo, na sua essência, envolvia, conotava, o politeísmo. O politeísmo, de per si, não constitui, porém, o paganismo greco-romano. Politeístas são o sistema religioso da Índia; politeísta era o velho sistema dos povos do Norte da Europa. Nenhum destes sistemas politeístas se assemelha porém, salvo no facto nu e cru de serem politeísmos, ao politeísmo greco-romano. A distinção entre o politeísmo índio e o grego não precisa ser feita por mim: fê-la, de uma vez para sempre, Heródoto, em uma frase precisa e feliz. As divindades índias são (disse) de forma humana, as gregas de natureza humana. A distinção é daquelas que completamente circum-navegam o assunto. Porque, mesmo nos pontos em que as duas religiões encaram a subida do homem a deus, na religião grega ele sobe pelo exercício sobre-humano das qualidades humanas, isto é, das qualidades que, no seu exercício normal, apoiam e edificam a vida; na religião índia, por contrário, as qualidades que elevam o homem a sobre-homem são qualidades onde se nega a vida, são as qualidades ascéticas, as práticas caritativas que viciam o egoísmo individual e cívico, a soma de renúncias que contradiz o normal prazer que o homem normal tem na vida. De sorte que a semelhança entre estes dois sistemas religiosos é puramente externa. ( . . . )

Uma diferença idêntica separa o politeísmo grego do politeísmo da Igreja Católica, representado por os seus santos, que, para a maioria das populações nas nações católicas, têm, na devoção e no culto, um lugar acima de Deus.

Outra, mas de idêntico valor, é a distinção a fazer entre o politeísmo grego e o dos povos do Norte da Europa. Aqui, realmente, há de comum que as divindades são representações humanas alargadas, e não negações da humanidade. Ao passo, porém, que os deuses gregos são objectivações formais dos instintos humanos, os deuses nórdicos são objectivações amorfas, vastas sombras mais do que grandes pessoas; das quais mais se aproxima, já, a religião menos estatual dos romanos, que a fé, estática e delimitada, dos helenos. Assim no politeísmo do norte se encontra bem figurada aquela índole que havia de ser sempre característica dos povos onde esse politeísmo nasceu — alma vaga, indecisa, onde os sentimentos são amorfos e os pensamentos abismados e profundos, alma que havia de manifestar-se nos sistemas abstrusos da filosofia alemã, na poesia nevoenta dos países nórdicos, e que do cristismo havia de extrair, a extrair qualquer coisa, antes a sua parte monoteísta que a politeísta, por isso que o politeísmo cristista, de origem greco-romana, traz consigo a lucidez da sua fonte, e o monoteísmo mais se presta à indefinição, à imprecisão, às sombrias e abismadas meditações que os povos da bruma trazem na sua alma, como a bruma contorna as suas paisagens.

Assim, da análise comparada, que fizemos, do politeísmo grego com os outros, tirámos esta conclusão: que ele se distingue, essencialmente, em ser 1) estático, 2) humano, 3) sincretista (?).

Encaremos, agora, o paganismo greco-romano do ponto de vista em que é vulgar compará-lo ao cristismo: isto é, da sua pretensa amoralidade, ou imoralidade mesmo. Esta imoralidade, a que a ignorância moderna se atém, apoiada ou em cultos que contrastam com a severidade do culto cristão, ou em que a expressão da moral pagã é, no geral, menos severa e menos espiritual que a cristista, provém simplesmente de que se considera moral o cristismo, passando, portanto, a serem imorais os não-cristismos todos. No erro têm caído, com um descuido sistemático, quantos, quer propondo-se ser cristãos, quer propondo-se ser anti-cristãos, quer defendendo a moral (cristã), quer procurando defender a imoralidade (suposta anti-cristã). É um erro crasso que subjaz os débeis pensamentos de tais como o «esteta» Wilde ou o seu mestre Pater; a ignorância da substância do paganismo basta para explicá-la.

1917?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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