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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O movimento de qualquer composição literária é o da onda.

O movimento de qualquer composição literária é o da onda. Divide-se em três, quatro, ou cinco tempos esse movimento, consoante a maneira como se decomponha para a nossa análise.

O movimento da ode consiste essencialmente em três tempos, e, como o da ode, o de toda a poesia lírica. O movimento está tradicionalmente gravado na estrofe, antístrofe e epodo da ode grega. O primeiro tempo corresponde à lenta subida da onda, ao chegar à praia; o segundo movimento corresponde àquele tempo em que a onda reflui sobre si própria, curvando-se; o terceiro tempo corresponde àquele gesto da vaga quando, findo o movimento anterior, se espraia e alonga pela areia. — Assim, pois, as relações entre a estrofe e a antístrofe são as seguintes: a antístrofe procede da estrofe, ou prolonga-a; e, ao mesmo tempo, opõe-se-lhe; assim como, ao fazê-lo, a faz culminar. — As relações entre a antístrofe e o epodo são análogas, posto que não iguais. O epodo ao mesmo tempo que prolonga a antístrofe (?), liga, por cima d'ela, com a estrofe; e, ao fazer isto, completa o movimento ideativo posto na estrofe, que a antístrofe ao mesmo tempo prolongou e interrompeu. — E o movimento tese-antítese-síntese da dialéctica platónica. Foi a grande descoberta dos gregos na arte esta da estruturação.

O movimento do drama consiste de quatro tempos. Temos a preparação, onde se expõem e se delimitam os conceitos temáticos; o desenvolvimento d'eles; o clímax, ou auge, a que chegam; e, por fim, a queda, pela solução do conflito que se representou. — Na onda, também, podemos dividir o movimento nestes quatro tempos. — Primeiro a onda avança recurva, e sobe para a sua crista; depois (2º tempo) curva em sentido contrário; a seguir (3º) move-se na curva oposta, que é já no sentido do primitivo movimento; por fim (4º, e último, tempo) estende-se no alastre final. Repare-se em como a estrutura de qualquer drama corresponde a esta classificação analítica dos tempos do ritmo do mar.

— No lº acto natural a situação é posta e esboçados os termos do conflito que vai desenvolver-se; tanto quanto é possível dizer-se tal de uma coisa em movimento, há um elemento estático (porque na onda o há quase horizontal) neste acto. No 2º acto natural desenvolvem-se os elementos dados no lº acto; e, enquanto no 1º se punham as situações de onde havia de nascer a possibilidade do conflito, no 2º determina-se a situação de onde o conflito há-de nascer. No acto natural dá-se o conflito. No 4º resolve-se. O movimento rítmico do 3º acto natural é no sentido do do 1º, porque o conflito nele se dá, e na curva do 2º, porque desenvolve o seu movimento culminado.

Fica, desde já, compreendido porque é que o final dos poemas e das outras obras literárias da Grécia é calmo; porque o fim da onda, o seu espraiar-se está ao mesmo nível que o princípio, e o princípio tem de ser calmo, porque é o princípio. O fim regressa ao nível do princípio.

O drama pode ser dividido em tantos actos, quantos se queira. Mas, naturalmente, tem quatro actos. Assim o ensina a intuição grega, filosoficamente desdobrada.

A epopeia, e toda a narrativa literária, baseia-se, não como a ode em três, ou o drama em quatro, tempos, mas em um movimento de cinco tempos, que é o mais largo em que se pode dividir o movimento da onda. Os movimentos são os quatro do drama, mas o cimo da onda, o ponto de passagem da curva no sentido inverso, para a curva no próprio sentido, da direcção da onda, é considerado como, também, um tempo do movimento. Assim, os cinco tempos do movimento épico são: (1) preparação, (2) desenvolvimento, (3) segunda preparação, (4) decisão, (5) fim. — Ocorrerá perguntar porque é que se chama decisão e clímax ao movimento recurvo da onda, quando se move já no sentido da sua direcção primeira, e se não chama — pelo menos nesta quíntupla divisão — o auge, ou o clímax, ao seu auge visível, que é quando a onda passa no seu ponto mais alto. É que — repare-se bem — em tudo isto se estuda o ritmo e não a altura; a altura da onda não entra na comparação, nem serve de base. É o seu ritmo apenas, e a sua altura só como serva do seu ritmo, que entram no problema. O auge da onda, em altura, é o seu ponto de máxima altura; mas o auge da onda, em ritmo, é o seu ponto de definitiva direcção. Esse ponto é quando, já sem retorno possível, se dirige para o ponto para onde a sua direcção a encaminhou.

É evidente que o que se diz aqui da ode, se aplica, na prosa, à obra que não contém narrativa, mas apenas impressão; que o que se diz aqui do drama, se aplica ao drama em prosa, como ao em verso; que o que se diz aqui da epopeia, e por implicação de qualquer poema narrativo, se supõe dito de, na prosa, a narrativa de qualquer espécie, seja conto, ou novela, ou romance extenso.

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

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