Uma torva e peçonhenta maldade…
Uma torva e peçonhenta maldade — maldade excessiva mesmo para o coração, tão de ofício viperino, de um editor — levou os srs. Lello & Irmão, não sei porque azar póstumo de Shakespeare, a escolher para vítima prolongada aquela, a maior de todas as almas que se têm enganado de mundo. Decidiram fazer passar a Shakespeare tratos de tradutor. E como encontrassem vis e criminosos precedentes, em ambos os lugares onde há más fadas, para que, sem ousadia de originalidade, n'eles alicerçassem o seu grande crime, escolheram para mestre de obras a figura, d'oravante laivada de perversão, do dr. Domingos Ramos. E passaram a insultar os descendentes dos navegadores com incutir-lhes a ideia de que é possível traduzir o verso e a prosa eternos de Shakespeare para uma prosa portuguesa excessivamente transitória.
Apenas folheei, e nem uma linha li, das traduções que o sr. dr. Domingos Ramos terá imortalmente que expiar. Porque não é com a competência de tradutor-de-inglês do sr. dr. Ramos que eu implico e esbarro. É com a sua competência para traduzir Shakespeare, visto que lhe cai em cima e o reduz a prosa.
Shakespeare só se deve ousar traduzir — o verso para verso, e a prosa para prosa, e que verso e que prosa têm de ser! Mas vá que o não sejam: o tradutor terá falhado n'uma boa causa. Agora propor-se pôr em mera prosa a prosa e o verso de Shakespeare, como se se estivesse traduzindo de uma tradução inglesa de Shakespeare para Rudyard Kipling — isso é que não pode ser — isso é que pede reclamação diplomática; justo ultimatum, intervenção estrangeira...
Apelo, indignado e crítico, para quantos em Portugal conheçam Shakespeare. Bem sei que não são mais que quatro ou cinco. Mas as grandes convicções valem exércitos. Com dois homens se fez o regicídio.
Fernando Pessoa
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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