Se quisermos estudar — em contraposição, sobretudo, ao ideal antigo...
Se quisermos estudar — em contraposição, sobretudo, ao ideal antigo — o critério de perfeição a que um dramaturgo hoje pretende, ou deve pretender, conformar-se, temos que procurar a sua causa na operação dos fenómenos culturais que, nesta matéria, fundamentalmente distinguem a nossa época das épocas anteriores; o seu efeito através das duas qualidades do espírito, que vimos serem causas na criação dramática. (Concretizando melhor: temos que ver, primeiro, quais são as normas práticas da cultura que cumpre que comandem o espírito do dramaturgo deste tempo; temos que ver, depois, em que é que, especificamente, essas normas influem na intuição psicológica e no instinto da acção sintética) .
Os fenómenos culturais, de que se trata, e que distinguem a nossa época de outras, são, primeiro, e no campo da cultura geral, a extensão, compulsão e intensidade da cultura científica; segundo, e no campo restrito da cultura artística, e desde o romantismo, a tendência para substituir os processos sugestivos aos definidores na realização da obra; terceiro, e no campo ainda mais restrito da cultura teatral, os aperfeiçoamentos especiais do instinto cénico e da arte de representar.
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As faculdades do espírito que são envolvidas naquilo a que chamámos o instinto da acção sintética não sofrem, pela agência daquelas causas, e em relação ao critério antigo, alteração notável quanto aos ideais gerais para que tendem. Desde que o drama é criticamente, ou conscientemente, drama, a tendência para aperfeiçoar a acção concretiza-se sempre no sentido de a concentrar o mais possível; nem para outro fim foram imaginadas as celebradas unidades de tempo e de lugar. Não houve nunca, em arte dramática outro ideal, porque tal ideal é o critério de perfeição que se deduz da própria substância do drama. O que o romantismo de parte da Renascença, e depois o romantismo como tal conhecido, realizaram no sentido de fazer predominar o elemento psicológico (como em Shakespeare) ou o lírico (como nos românticos) sobre o elemento dramático não representa uma fase evolutiva, mas um desvio mórbido; não tem por isso interesse para o caso do ideal dramático.
Neste campo restrito da acção dramática, a única influência moderna notável é a que provém do acréscimo do instinto cénico, e do aperfeiçoamento da arte de representar. Um e outra têm evoluído no sentido de conseguir uma ilusão cada vez maior de naturalidade e de inevitabilidade. Servo desta necessidade legítima, o dramaturgo moderno tem sido compelido a eliminar progressivamente os artifícios palpáveis do antigo drama — os monólogos, as entradas e saídas mecânicas, a sucessão arbitrária de cenas. Enorme como progresso técnico, este avanço carece de alcance profundo apenas porque deriva das mais, e não das menos, superficiais das causas culturais operantes.
De resto, no que respeita ao instinto da acção dramática, as influências culturais mais profundas só operam hoje em um sentido: é quando a acção envolva uma tese, conclusão ou “filosofia”. De per si, a presença de uma tese não aumenta nem diminui, como arte, o equilíbrio ou relevo da obra dramática. A tese é extra-artística no drama, como em qualquer obra não-filosófica por natureza; e, como tudo quanto na arte é extra-artístico, a tese pode aumentar o valor da obra, se é tratada, e nela integrada artisticamente; diminui-o com certeza se o não é, se, por o não ser, representa, pelo menos, um acréscimo inassimilado no conjunto. Ora, na obra dramática moderna, onde haja tese, as causas culturais já citadas operam no sentido de compelir o autor cioso da perfeição a apresentar essa tese de determinado modo.
A preocupação artística moderna, de sugerir em vez de exprimir, obriga-nos a que concebamos o ideal dramático neste ponto como o de que a tese, conclusão ou filosofia do drama seja sugerida pelo seu enredo ou conjunto, e não dita por esta ou aquela personagem (em substituição sem vantagem dos coros do drama antigo), não distribuída pelas personagens em indicações ou considerações directas (como nos monólogos que no drama ante-moderno foram o seguimento dos mesmos coros). Ou pelo processo simbólico, em que o drama é, pelo enredo fora, a sombra, passo a passo, de uma ideia (como nos dramas de Maeterlinck ou de Lord Dunsany, aliás falhados pela opressão excessiva do símbolo); ou pelo processo sugestivo, em que a obra no seu conjunto findo leva a uma conclusão (como, sem falha, no drama a que estas considerações servem de comentário) — o facto é que a tese só é admissível ao instinto artístico moderno quando, de uma ou de outra destas duas maneiras, ela se integra na estrutura da obra e com ela se consubstancia, e não se lhe extra- ou justapõe.
Neste campo do instinto da acção dramática não produziu a cultura moderna outros resultados, quanto ao ideal que o dramaturgo de hoje procura conseguir; é no campo da intuição psicológica, no conceito do psiquismo individual, que a cultura científica produziu, na mente do dramaturgo, porque na de toda a gente culta, resultados novos e notáveis.
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Cinco conceitos predominantes, de origem científica todos, formam hoje parte determinante e insensível da cultura geral, no que diz respeito à interpretação psicológica. Um desses conceitos vem da biologia; três são dados pela ciência psicológica, o quinto é insinuado, mais do que dado, pela ciência, pois que nasce, não dela, mas da filosofia científica.
O primeiro conceito, disse, vem da biologia; da ciência do corpo, em que é fundamental, passa por extensão directa para a ciência do espírito, pois que essas duas ciências são, afinal, ambas ciências da vida. É o conceito de que o homem, psíquica- como fisicamente, é, como qualquer outro animal, produto determinado da hereditariedade e do meio. Não interessa, para o caso presente, analisar e esmiuçar o conteúdo desta ideia; apontar, por exemplo, como no próprio conceito de hereditariedade se inclui o seu oposto e complementar, o de variação. No seu alcance geral e absoluto, tal conceito é uma conclusão assente da ciência positiva.
Dos três conceitos seguintes — os que a psicologia traz — - o primeiro é directamente psicológico. Deriva daquela aquisição definitiva e fundamental da ciência do espírito, pela qual ela se contrapõe radicalmente à antiga filosofia da alma. Em poucas palavras ele se define por extenso: “O homem é um animal irracional”. Com efeito, contra a pseudopsicologia tradicional, cristã como não-cristã, para quem a alma humana era símplice, a razão a faculdade, não só distintiva, como também impulsiva, do Homem, e a consciência o fenómeno definidor dos factos psíquicos, a ciência psicológica constata que a alma humana, soma de instintos e impulsos herdados e de hábitos adquiridos e insensíveis, é um composto heterogéneo; que a emoção, e não a razão, conduz o Homem como os animais, sendo apenas maior mas não mais activa naquele do que nestes; que a esfera do inconsciente, ou subconsciente, é enorme e activa, e pequena e quase estática a esfera da consciência. Esta tripla conclusão é uma só: o Homem é uma soma heterogénea de solicitações inconscientes, a que uma consciência e uma razão, aquisições recentes da animalidade, presidem como um rei constitucional, que reina mas não governa. A acção humana é irracionalizável, contraditória, absurda. Quanto tenha coerência, é a coerência do temperamento, não do raciocínio. A razão alumia um caminho que não determina. A vontade está sempre sob sugestão post-hipnótica. A mais lúcida e simples das nossas escolhas é inúmera e obscura nas suas origens.
A este conceito fundamental da ciência psicológica, uma parte especial dessa ciência, a psiquiatria, acrescenta dois conceitos. O primeiro — deduzível, aliás, da biologia, mas que os psiquiatras constataram independentemente — é o da importância suprema do fenómeno sexual na vida do espírito. A psiquiatria nota, com efeito, que a desagregação psíquica é quase sempre acompanhada pelo desvio sexual. Quase sempre? A mais recente das teorias psiquiátricas diz que sempre. Freud e os seus discípulos, através da “psico-análise”, afirmam a origem sexual de todas as psicoses. Justa ou não esta doutrina extrema, o certo é que a sexualidade domina os factos psíquicos tanto, se não mais, que os físicos; e que a sua importância notavelmente se vê quando se analisam as manifestações mentais de um louco ou de um degenerado.
O segundo conceito, que a cultura psicológica geral deve à psiquiatria, é o de que a superioridade psíquica notável é acompanhada por um desvio psíquico, que todo o superior é um doente, ou, em termos mais flagrantes, que o supernormal é, por ser isso mesmo, anormal. Este conceito teve interpretações extremas e absurdas, como em Lombroso; mas ninguém, hoje, duvida de que seja, na sua substância, uma verdade; de que a variação extrema não envolva desadaptação.
Finalmente, a filosofia da ciência, e não já a ciência propriamente, trouxe para a cultura geral um conceito importante, que é o último dos que serão aqui citados. E o conceito determinista, que, na aplicação psicológica, se resume na tese de que todo o acto humano é o produto determinado do temperamento e do impulso, ou estimulo, externo. Assim, e à luz deste critério, todo o acto humano é o cruzamento inevitável de duas linhas inevitáveis — o carácter determinado do indivíduo, e o curso determinado dos fenómenos externos. Este conceito pode ser verdadeiro, pode ser falso; mas a verdade é que ele é uma conclusão tão inevitável da soma das aquisições científicas, é uma necessidade tão iniludível da nossa mentalidade culta, que ninguém o contestaria se o dogma religioso, ou preconceito pragmático do livre-arbítrio, se não sentisse por ele desapassado. O que se não pode negar é que o conceito determinista influi subtilmente em espíritos que repudiariam a fé expressa nele; que é um dogma essencial da mentalidade de hoje; que por ele regressou ao espírito humano o antigo conceito, tão profundamente dramático, da Fatalidade.
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Quem quiser, à luz destas considerações, percorrer com atenção ainda que rápida a obra dos artistas psicólogos — romancistas ou dramaturgos — modernos, constatará sem dificuldade que, umas vezes conscientemente, outras inconscientementes quase toda a arte de hoje, em que haja elementos psicológicos, tende para uma perfeição que aqueles cinco conceitos orientam e determinam.
A que atribuir, senão a eles, tantos estudos da hereditariedade, tantos estudos de “meios sociais”, e da influência deles sobre os homens, na novela e no drama da nossa época? A que atribuir uma tão profusa e tão especial atenção aos desvios sexuais e aos conflitos provenientes desses desvios? A que atribuir uma tão larga cópia de preocupações psiquiátricas na arte psicológica do nosso tempo? Se quisesse citar exemplos, alargaria indevidamente este estudo, que já deveria ser mais breve. Quem ler estas considerações, faça, porém, com suas próprias leituras a demonstração demorada. Verá que quase todas as correntes e contracorrentes da arte psicológica moderna são a revelação de que estes conceitos da ciência, entrados já na substância da cultura geral, e infiltrando-se por isso subtilmente nas mais recônditas inconsciências do pensamento, constituem já sugestões artísticas. O limite da preocupação científica na arte — mas neste caso já inadmissível, e consciente e voluntário demais — é o espantoso acto “O Teatro da Alma”, de Evreinoff, em que a cena é o “interior da alma humana” e as personagens, designadas por A1, A2 e A3, etc., são as várias sub-individualidades componentes desse pseudo-simplex a que se chama o espírito. Mas neste caso o autor fez inteligência demais e arte de menos na obra, que fica pertencendo, como a maioria das inovações literárias e artísticas modernas, não à arte mas às curiosidades da inteligência, como os anagramas, os desenhos de um só traço e os poemas univocálicos.
A verdade, porém, é que o artista psicológico moderno não pode já construir uma personagem, integrá-la num enredo, desenvolver esse enredo, sem atender aos cinco conceitos científicos a que me tenho referido. E, na proporção a que a eles atenda, e o faça instintiva e inconscientemente, como a arte exige, ele criará uma obra susceptível de ser duradoura; pois que, adaptando-se a aquisições da ciência, e não a caprichos da moda, adapta-se àquelas conquistas da inteligência que constituem a substância da cultura, a qual, por sua vez, constitui a substância da civilização.
Para mim, o valor capital do drama “ Octávio”, o que o torna, a meu ver, notável entre a multidão nula das peças modernas, sejam de que nação forem, é que, por acção [de] um seguro instinto, ele é orientado exactamente no sentido que a cultura moderna impõe como o caminho do dever artístico.
Não creio que Vitoriano Braga fosse guiado, ao adequar-se a estas impulsões da ciência, por um esforço consciente, ou, mesmo, por um conhecimento intelectual da cultura científica. Nem, que o fosse, isso lhe serviria, pois que a obra artística deriva de origens mais subtis que a compreensão e o raciocínio; tanto que Ibsen, que quis fazer drama psiquiátrico, não conseguiu, nem sequer de longe, criar personagens tão inteiramente verdadeiras, perante a própria psiquiatria, como Shakespeare, cuja época não tinha a ciência, mas cujo espírito tinha a intuição. Com efeito, a ciência moderna pasma da perfeição sintomatológica com que são delineadas, vivas e concretas, com os traços físicos como os psíquicos, a histero-neurastenia de Hamlet, a demência senil de Lear, a histero-epilepsia de Lady Macbeth.
Não importa, pois, que eu não creia que Vitoriano Braga se guiasse conscientemente por o critério científico que expus. Importa, sim, que ele seguisse um instinto que, com a segurança de todos os instintos, se ajustou inconscientemente a esse critério necessário. Sim, o que importa é que, sendo tais as indicações da ciência psicológica, ele, seja de que modo ou por que razão, as tenha deveras seguido.
E, com efeito, o drama “Octávio” corresponde, passo a passo, e nos detalhes como no conjunto, às exigências com que a cultura moderna impõe a acção dramática.
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.
- 87.Fragmento de ensaio sobre o drama “Octávio” de Vitoriano Braga