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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

No «Diário Nacional» de 29, no decurso de uma crítica geral,

No «Diário Nacional» de 29, no decurso de uma crítica geral, feita ao primeiro número da revista «Centauro», o sr. Alfredo Pimenta alonga-se num número de considerações desfavoráveis sobre a colaboração, nessa revista, do poeta Camillo Pessanha.

Tanto porque essa crítica envolve pontos de vista muito contestáveis, como porque um preconceito malévolo, de não sei que origem, a vicia, acho conveniente que sobre ela se não deixem de consignar determinadas considerações.

Antes de mais nada, será útil inquirir (e isto é possível sem que se saia das normas mais rigorosas da discussão jornalística) em que assenta o sr. Alfredo Pimenta a competência, que a si confere, para praticar a crítica literária.

Entre nós, como, aliás, em muita parte do estrangeiro, a crítica literária está entregue a indivíduos sem preparação alguma para formar um juízo em matéria de arte escrita, quer por uma falta total de cultura, quer por uma especialização excessiva em certas formas de leitura.

O sr. Alfredo Pimenta realiza, a dentro da secção especial do jornalismo, o tipo do erudito, contrastando-o com o de homem culto. Creio necessário estabelecer entre o homem de erudição, e o de cultura, uma distinção importante. De certo modo, ela pode ser baseada naquela observação de Walter Bagehot, quando, analisando qual seria a qualidade fundamental do espírito de Shakespeare, verificou que devia ser a capacidade de experienciar, the experiencing capacity. Queria ele dizer que o que caracterizava o espírito de Shakespeare era a sua espontânea tendência para utilizar todos os factos que lhe caíssem sob a experiência para aumento e cultura do seu espírito.

A erudição envolve apenas a abundante leitura com a precisa compreensão do que se lê. A cultura pode não envolver uma leitura extensa; o que fatalmente envolve é o que, em geral, é resultado de uma leitura extensa — aquela atitude de espírito que se marca por uma absorção profunda de tudo o que lê, vê, ou de qualquer outro modo experimenta.

Temos, pois, que nisto consiste, fundamentalmente, a diferença entre a erudição e a cultura: que, ao passo que a erudição é uma questão de quantidade, a cultura o é de qualidade; que, ao passo que a erudição é uma questão de superfície, a cultura o é de profundeza; que, ao passo que a erudição atinge apenas, nos seus efeitos psíquicos, a inteligência, a cultura atinge todas as faculdades do espírito, incidindo sobre a sensibilidade como sobre as faculdades simplesmente intelectuais.

No fundo, a distinção real consiste em que o erudito não é um imaginativo; ao passo que o é o homem culto.

Com a diferença de pertencer à espécie jornalística, o sr. Alfredo Pimenta é um exemplo assaz curioso do tipo do erudito. A sua leitura, que é vasta, não produz nele efeitos que passem para além da sua inteligência; ele não se adapta ao meio intelectual que cria em seu torno, com o que lê. Assim, lendo e relendo obras estrangeiras, notando-as e citando-as em abundância, não há trecho dos seus escritos que marque que esse espírito cosmopolita penetrasse no âmago do seu ser. Ele permanece, ao fim de todas as citações de Wildes e de Lorrains, impenetravelmente português, e, o que é pior, provincianamente português. O seu espírito é todo em linhas rectas, sem ondulação nem imprecisão; a sua sensibilidade é sempre a de outra pessoa. Pertence ao tipo vulgar do ledor que vê quadros através dos críticos e sente versos através da interpretação d'eles.

Se qualquer coisa bastasse para o provar, serviria o facto de ele ser, como todo o português, escravo da hipnose do estrangeiro. É essa hipnose que o faz preferir as Serres Chaudes aos poemas de Camillo Pessanha, tão evidentemente superiores, o que de resto pouco representa, dado o pouco peso que as Serres Chaudes têm na balança de qualquer crítica esclarecida.

A sua admiração out of date por Wilde, que nunca foi uma figura de destaque na literatura inglesa, mas apenas na sociedade inglesa e no meio literário londrino — o que não é a mesma coisa. A sua prosa pesada cai ou manca na civilização inglesa; e do seu verso não se pode falar, por isso que é de grande (...)

1916

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

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