Proj-logo

Arquivo Pessoa

OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
pdf
Fernando Pessoa

O essencial em arte é a forma como a ideia ou o sentimento é sentida;

O essencial em arte é a forma como a ideia ou o sentimento é sentida; a ideia em si nada tem com a obra d'arte senão, se isso, subordinadamente. Assim o célebre monólogo de Hamlet sobre o suicídio e a morte não contém basilarmente senão ideias das mais vulgares e medianas; mas tem duas qualidades artísticas supremas: a dramática da forma do pensamento assim expresso ser a natural a Hamlet, e a poética, de serem as expressões escolhidas sublimes e líricas de natureza.

Já o mesmo se não dá com poesias como a Divina Comédia de Antero, ou, melhor ainda, os dois sonetos formando a «Disputa em Família». Aqui não há só a forma maravilhosamente simbólica de idear em si a ideia basilar, há essa própria ideia basilar, profundíssima, por exemplo, nos dois sonetos segundamente citados.

Como se deve portar a crítica n'um caso d'estes? Não há dúvida que há mais intelecto nos dois sonetos de Antero do que no célebre trecho de Shakespeare; mas seguirá de aí que os dois sonetos são superiores ao monólogo de Hamlet? É uma questão espinhosa, cujo problema é este: se no avaliar do artista entra o avaliar do homem intelectual todo? Se não entra, e dado que o artista-intelectual nada tenha escrito a não ser poesia, cometemos uma injustiça para com ele, pois excluindo-lhe a inteligência da nossa apreciação, lhe rebaixamos o génio. Se tomamos em conta, porém, a base intelectual da sua arte, estaremos fazendo crítica estética ou não misturamos, por erro, a crítica estética com a filosófica e, talvez, a psicológica?

A solução do problema não apresenta grande dificuldade. Porque evidentemente se algum poeta escrevesse um drama tendo o poder de concepção, intuição e arte do Rei Lear e, a mais, ideias e concepções originais e fundas, esse poeta, além de granjear um lugar à parte, entre os filósofos, seria maior do que Shakespeare. Isto é evidente. Mas não é d'isto que se trata. Queremos saber é que proporção tem, para o crítico, na adjudicação da grandeza ao artista, a ideia basilar e a forma imaginativa da ideia. Porque, claro está, um filósofo alienado que se lembre de escrever boa filosofia em versos impossíveis, ficará considerado como um mau artista mas terá do mesmo modo o seu lugar na história da filosofia. Ninguém fala de Xenófanes ou de (...) como poetas; são filósofos que escreveram em verso, e ainda assim em verso que não é positivamente mau, mas que não chega a ser artístico (criticamente falando).

O caso é porém, que o que em arte é essencial é o valor estético da forma da ideia; dado que a forma seja bela a poesia que a exprime será tão boa quanto a ideia é levantada e grande. Eis tudo. Um poeta não é apenas um artista; não trabalha sobre forma apenas, como o escultor, nem sobre forma e cor apenas, como o pintor, nem sobre sons apenas, como o músico. É sobre todas que trabalha. E sobre ideias também.

De maneira que, de dois poetas igualmente grandes na forma de idear, será maior aquele cuja ideação maior for. Fora da igualdade em ideia ou forma de ideia, não há critério seguro para determinar qual a grandeza relativa de dois ou mais poetas. Assim quem quisesse determinar sobre quais eram superiores, dos sonetos de Shakespeare e dos de Antero de Quental, achar-se-ia em dificuldades. A expressão íntima da ideia, a forma da ideação é tão superior em Shakespeare quanto é em Antero a ideia em si; na expressão exterior não se avantaja qualquer d'eles sobre o outro (adaptação maravilhosa das imagens e do ritmo à essência sendo igual em ambos). Assim, não descendo a minúcias psicológicas, para o crítico podem considerar-se iguais como sonetistas os dois poetas em questão.

Antero não podia escrever: (cite characteristic Shakespearianism), conquanto no seu género chegasse a (...). Mas S[hakespeare], se, dado que o quisesse fazer, pretendesse dar a agonia (...) do soneto NOX de Antero, não era capaz, a não ser que mudasse de psiquismo, de se elevar talvez nem sequer à compreensão de ideias como as que são poeticamente contidas em sonetos como (cite).

s.d.

Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.

 - 246.

Indicação inicial: «Estética».