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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Uma das coisas com que se entretiveram os meus irrespondentes...

Uma das coisas com que se entretiveram os meus irrespondentes foi o demonstrar a minha grande ignorância de assuntos maçónicos. Como no resto, isso nada vinha para o caso. Estamos outra vez no 13 de Fevereiro e no Kiuss. Supondo que os meus conhecimentos da natureza e história da Ordem Maçónica fossem pobres e superficiais, nada isso pesava em favor do projecto do Sr. José Cabral. Como, porém, não há direito de intrujar o público, nem em nome do duplo sacerdócio de uma imprensa que se diz cristã, desejo empregar o espaço, já mais breve, deste artigo em corrigir a quasi inacreditável série de dislates que me foram opostos como ciência maçónica, consciência católica e proficiência histórica.

Deixo de parte o erudito que nas Novidades assina "Malho" — Nada disse: limitou-se a cair nos alçapões que pus pelo meu artigo fora. Lamento somente que naquele jornal seráfico se empreguem expressões como (...), se bem que conheço a justificação que pode ser apresentada: os católicos romanos não são cristãos, mas pagãos sombrios, em nada têm pois que conformar-se com as doutrinas dos Evangelhos, e em nada que pretender seguir os ensinamentos do Cristo. Sei isso tudo muito bem. O que não compreendo é porque há "Malho" nas Novidades . Acham "malhete" pouco? Símbolo, embora involuntário; símbolo. "Latet in symbolis vita alteris vitae". E o Malho escusa de me vir dizer que sabe onde está essa frase, porque o pseudo-cristão não conhece os rituais da Ordem onde eles figuram, nem naturalmente, por serem em latim, debaixo da cifra em que estão translatos, porventura os entenderia. Nunca compreendi, aliás, porque é que os Padres da Igreja de Roma não sabem o latim em que, maçadamente, ofendem os rituais e as cerimónias cujas palavras profissionalmente proferem, sem alma, sem vida e sem religião. Esses amanuenses de Deus — de Deus como eles lá o entendem — nem sequer fingem servir decentemente o Grande Patrão. Por isso a freguesia escasseia, ou compra só batatas, para com elas formarem a sua lógica.

Ora, deixado de parte esse erudito do antipatriotismo negro, fica-me só, por desgraça minha e do leitor, o Sr. A[lfredo] P[imenta]. Esta enciclopédia irracional é um dos mais perfeitos símbolos, exemplares e tipos que temos hoje, para prazer do nosso riso e mágoa do nosso espírito. É o perfeito símbolo do intelectual reaccionário — um monstro menor, magro de si mas engordado de reflexos e citações. É o perfeito exemplar do político reaccionário — um monstro um pouco maior, triste de si mas alegrado de ódios. É o perfeito tipo do interruptor nacional — um monstro enorme que se intromete sempre onde ninguém o chama e vem elucidar com asneiras o que ninguém escreveu. Sem termos aqui Loch Ness algum, apareceu-nos este monstro sem sequer trazer consigo o Loch. Assim seja. [...] O Sr. Doutor A[lfredo] P[imenta] tem todo o valor [?] pelo menos literário, [...] só um castigo de Deus — uma praga de gafanhotos, como as vi em África: começa por esconder o sol e acaba por roer o verde. Felizmente tudo isso passa: é uma espécie de sarampo das novas épocas, se bem que o Sr. Dr. A. E,. tenha mais parecenças com uma tosse convulsa.

Até aqui tenho tratado o Sr. Doutor Alfredo Pimenta com a maior cortesia. Vou agora atacá-lo, desmenti-lo e ensiná-lo. Vai levar uma ensaboadela, e das boas. Ou fica limpo ou fica morto. No primeiro caso, presto-lhe um serviço a ele; no segundo, presto-o ao país.

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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