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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Pela primeira vez na minha vida fabriquei uma bomba.

Pela primeira vez na minha vida fabriquei uma bomba. Cerquei o seu dinamite de verdade com um invólucro de raciocínio; pus-lhe um rastilho de humorismo. Feita, atirei-a aos opositores da Maçonaria. E o efeito foi não só retumbante mas milagroso. Perderam a cabeça sem a ter.

O efeito físico da bomba foi, além disso, de três respostas — o que é novidade, creio, nestes engenhos, materiais ou morais. O primeiro efeito foi o pasmo; o segundo a irritação; o terceiro a asneira.

O primeiro efeito, disse, foi o pasmo. Ninguém esperava, ou poderia esperar, que semelhante artigo aparecesse. As campanhas anti-maçónicas nutrem-se, quasi todas, da impunidade de quem as faz e da ignorância de quem as lê ou ouve. Sabe-se que a Maçonaria tem por norma não vir a público, de nenhum modo, anunciar-se ou defender-se. Pode portanto dizer-se acerca dela o maior número de dislates, de calúnias e de mentiras, que ela não protesta, não se queixa, não desmente. Por outro lado, o público é completamente ignorante da matéria — não tanto, é certo, como os anti-maçons, pois, ao passo que o público nada sabe do assunto, os anti-maçons sabem só coisas que ignoram, erros, confusões, disparates. Mas o facto é que, ignorante o público da matéria, não pode, naturalmente, notar esses erros, verificar essas confusões, ver nos disparates os disparates que são.

Uma campanha anti-maçónica é pois a coisa mais de fazer que possa haver neste pobre mundo. Não há mister audácia, nem inteligência, nem ciência — audácia, porque o adversário não responde; inteligência, porque o adversário não corrige; ciência porque os únicos que podem corrigir os erros estão sob um sigilo que lhes inibe a correcção. Para fazer uma campanha antimaçónica basta que se seja moralmente intolerante, para que se pense em realizá-la; mentalmente analfabeto para que, ignorante da dificuldade e da complexidade do assunto, ela de facto se realize. Disse Pope — católico-romano e maçon — que os parvos entram onde os anjos temem entrar. O poeta da Oração Universal parece que estava pensando, por profecia e antecipação, nos desmantelados mentais que haveriam no futuro de atacar a sua Ordem.

A história das campanhas anti-maçónicas — que seria interessante escrever, e talvez um dia eu escreva revela isto com uma abundância enxundiosa [?]. Quando não são produto de um fanatismo cego, vibrando fruste o florete boto da insciência (como em Barruel, Eckert, e, mais perto de nós, Monsenhor Jussin [?]), são derivadas de causas mais profundas, a que não falta nunca a mola da indignidade.

Foi dessa ordem a maior e a mais violenta de todas elas a do caso Morgan, nos Estados Unidos: foi um simples truque eleiçoeiro, para evitar — e de facto evitou — a eleição a Presidente do maçon (...) venceu o candidato opositor, Andrew Jackson, que, para que ao caso não faltasse a ironia dos resultados, — era maçon também.

Foi dessa ordem a complexa e prolongada brincadeira de Léo Taxil e (...) Bataille, que, ao mesmo tempo que não deixou de irritar a Maçonaria, cobria de ridículo a Igreja Romana, a credulidade estúpida dos seus fiéis, o fanatismo estulto dos seus sacerdotes. Nem consta que com ela alguém lucrasse, excepto, materialmente, os que tão retumbantemente a fizeram, e, moralmente, a Companhia de Jesus, que, por processos que não vêm ao caso, conseguiu, através dela, consolidar ainda mais a sua posição junto do Vaticano. Quem quiser conclusões que as tire: estão aqui o poço e o balde.

Da mesma ordem, ainda, é a Campanha que recentemente tem enxameado — num quase inacreditável zumbir de calúnias e asneiras — na imprensa francesa, a pseudo-propósito dos casos Stavisky e Prince. Nascida em, ou afagada por, jornais que não são reaccionários, o seu intuito íntimo revela-se com facilidade: procura-se, ou procurou-se, desviar a atenção para a Maçonaria, para que essa atenção, livre de pressões e sugestões, não vá ou fosse incidir num outro ponto, onde está, tapado com jornais, o verdadeiro alvo.

Dado, pois, o hábito de impunidade mental e moral em que comumente vegetavam barulhentamente as campanhas anti-maçónicas, o meu artigo no Diário de Lisboa não podia deixar de cair como uma bomba no meio do que nos anti-maçons simula, sem grande êxito, a existência da alma.

Não lhes ocorreu, nem lhes poderia ocorrer, que houvesse alguém que, não sendo maçon, nem sendo portanto presa de qualquer sigilo que o impedisse de falar, tivesse contudo o conhecimento suficiente para poder falar com mais autoridade que todos os antimaçons juntos, assim como o sentimento fraternal para com os maçons para, podendo falar, se decidir desde logo a fazê-lo. Os carbonários de Roma nunca ouviram falar num cristão gnóstico nem na Tradição Secreta no Cristianismo, nem nos laços apertados e ocultos que ligam essa tradição ao mais íntimo do espírito maçónico. Se fosse possível ou lícito invocar D. Dinis, ou o padre António Vieira, qualquer deles lhes saberia explicar.

De aí, repito, o pasmo que o meu artigo causou nas mafias e camorras do Vaticano local. Ao pasmo, como é natural, seguiu-se a irritação. Se essa irritação tivesse ficado silenciosa, teria ao menos conseguido estar calada. Os débeis mentais são, porém, falhos de qualidades de inibição, pela deficiência ingénita dos centros cerebrais superiores. Por isso gritaram; e, o que é pior, falaram; e, o que é péssimo [,] escreveram. Desabou sobre a vista desarmada dos leitores um tal caudal de asneiras que teriam ficado cegos se na asneira houvesse luz. Não ardeu Tróia, é certo, porque o cérebro dos anti-maçons não e comparável sequer a uma cidade que foi tomada por um cavalo.

Aponto com prazer três excepções — uma moral, intelectuais as outras duas. Registro, com agradecimento, o modo cortês com que, magoado que estava com o meu artigo e sobretudo com a sua parte anti-romana, o Sr. Conselheiro Fernando de Souza todavia se referiu ao meu artigo e a mim. À sua perfeita cortesia se juntou, para mais moralmente me confundir, o elogio a certos passos do meu livro Mensagem. Isto é tão extraordinário em adversários portugueses que, se houvesse uma Ordem de Civilidade como a há de Benemerência, eu proporia o Sr. Conselheiro Fernando de Souza para qualquer coisa acima da Grã-Cruz.

As outras duas excepções — as intelectuais — são artigo assinado T. D., no número (...) do Fradique, o breve e admirável artigo de Rolão Preto, no número (...) do mesmo periódico. O primeiro mostra ciência — uma ciência unilateral, mas real, por vezes curiosíssima. O segundo mostra inteligência e alma. Ambos, de um modo ou de outro, mais ou menos claramente, concordaram comigo. Comigo, aliás, concorda também, no seu artigo Unidade Maçónica o Sr. Conselheiro Fernando de Souza. Tive que ler esse artigo três vezes para me compenetrar de que o não lia em sonho. O Sr. Conselheiro Fernando de Souza desenvolve, sem me desmentir ou combater, o que eu dissera sobre a Hungria e o empréstimo americano. Acrescenta, tão somente [?], que o Governo húngaro tinha razão para suprimir, ou tentar suprimir a Maçonaria. Nada vem isso para o caso. Encarei o facto objectivo dos resultados que provieram dessa acção do Governo húngaro; dos seus motivos, por sua natureza objectivos, não tinha que curar.

E, por junto, de bom, houve só isso. O resto (...)

É interessante, embora doloroso, analisar os processos mentais dos argumentados escreventes portugueses. Podem resumir-se em um — a incapacidade de argumento. Tanta lei, tanta lei, e não haver uma lei que proíba o exercício ilegal do raciocínio!

s.d.

Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.

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