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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Notas ao livro de Max Nordau

Notas ao livro de M[ax] N[ordau]

Outrossim se engana o psiquiatra alemão quando contesta ao poeta o vago do pensamento fazendo distinções, para o caso fúteis, entre pensamento são e pensamento mórbido — o primeiro próprio, no dizer dele, do verdadeiro e são poeta, por exemplo Goethe, o segundo do poeta degenerado.

Em arte porém não se trata, nem da degenerescência do artista como homem, não da sua degenerescência mais localizadamente como pensador ou sentiente. Trata-se apenas da sua degenerescência única e exclusivamente como artista. O fundo da sua personalidade e do seu pensamento pode ser quanto se quiser, mórbido e estranho (anormal): nada disso esteticamente importa. E da sua

forma — forma psíquica — de estetizar esse pensamento, e na sua (...) que o crítico de arte trata.

Um sentimento em si mórbido pode ser limpidamente tratado por um artista; o homem será doente e o artista são. Os sentimentos inspiradores não são limitados aos assuntos morais, naturais ou (...). Baudelaire é um grande poeta e um homem emocionalmente doente.

Um sentimento em si vago e indefinido pode ser tema inspirancial de um poema, de um quadro ou de uma partitura. (...) Grande parte dos sentimentos inspiradores dos artistas é indefinida e vaga. A saudade, o (...), o horror da morte (...), da vida, a sensação (...) do mistério — nenhum destes temas supremos de

inspiração é coisa clara e nítida e exaustivamente analisável. Emocionalmente porém é claro. Ora a arte é apenas a substituição da inteligência à emoção. O que deve sê-lo porém é o modo como o poeta, o artista ou o compositor musical o concebe para que artisticamente o interprete. O que não pode ser vago e indefinido é o

pensamento do poema, quadro ou partitura em si. Aí é que vem a parte do artista. A suprema arte é justamente a concretização do abstracto, a nitidização do indefinido, a lucidização do obscuro no símbolo, ideia ou (...) na obra de arte.

É caso de distinguir, como apontava e fazia Edgar Poe, a expressão da obscuridade da obscuridade da expressão. O obscuro em si lucidamente expresso permanece o obscuro em si, o obscuro não claro mas claramente obscuro. A arte que dá ao obscuro uma expressão lúcida não o torna claro porque o que é obscuro de essência só por erro de interpretação pode deixar de o ser mas torna-lhe clara a obscuridade.

Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création. Maria Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977.

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