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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Desde a «Degenerescência» de Nordau, a atenção de muitos críticos...

Desde a «Degenerescência» de Nordau, a atenção de muitos críticos tem sido chamada para a existência de elementos mórbidos na literatura, e sobretudo, em certas manifestações da literatura contemporânea. Por graves que tivessem sido as críticas feitas ao livro de Nordau, alguma coisa ficou dele, e será difícil pretender-se hoje que o simbolismo francês representa um movimento literário são e absolutamente revelador, porque, visto que não é inteiramente são, não pode renovar mas apenas corromper.

Se o movimento simbolista francês é uma manifestação mórbida, faltam palavras para dizer o que será o movimento literário que presentemente se esboça em Portugal. Se bem que vá ainda em começo — praza a Deus que nunca daí passe! — é já uma escola nitidamente caracterizada e diferente das outras. E o que nela é essencialmente perigoso é o seu inexplicável poder de criar adeptos, de influenciar espíritos. Se reflectirmos que ele é ainda por assim dizer uma escola silenciosa (ou quase silenciosa) e oculta, sua influência é verdadeiramente espantosa, tanto mais que à primeira vista parece incrível que uma tal anormalidade consiga arregimentar não só gente que escreva e se filie em tal corrente, mas um grande número de gente que, não escrevendo, se dá por compreendedora do que esses homens escrevem.

Vendo bem, não é totalmente inexplicável essa influência. As condições da vida moderna, as peripécias políticas e sociais que em todos os estados se dão hoje, criam não só uma predisposição latente para a doença em quase todos os espíritos, e sobretudo nos fracos e semi-artísticos mas também um desejo furioso de novidade que é talvez o que na arte corresponde ao espírito revolucionário nas sociedades.

Entre nós conhece-se pouco a literatura portuguesa. Mas mesmo que se conhecesse muito seria difícil determinar de onde esta nova escola vem. Depois da França, foi Portugal, ainda que poucos o saibam, quem teve uma escola simbolista caracterizadamente tal; dela ficaram apenas dois nomes, se tanto: Eugénio de Castro e António Feijó. Mas a nova escola de que falamos, além de nada ter com essa, nem ao simbolismo francês (com o qual tem certas semelhanças, provenientes talvez de um comum

elemento doentio) se aparenta propriamente.

Será difícil dar ao leitor uma ideia sequer aproximada do que seja essa nova escola, tanto porque no enquanto pouquíssimos livros há publicados dela, como porque é de si tão complexa, tão confusa que não há maneira de a definir.

O chefe da escola não sei bem que seja, mas ou é o sr. Fernando Pessoa ou o sr. Mário de Sá-Carneiro. Pelo modo como os iniciados falam, é o primeiro. O sr. F.P. não tem livro nenhum publicado. Não sei se é para fazer o papel de um Mallarmé português, ou é porque não tenha conseguido, o que se pode acreditar, que algum editor lhe publique uma obra. O snr. Mário de SC tem três livros, o primeiro fora da nova escola ainda, os dois segundos, publicados simultaneamente há pouco, plenamente nela. São mesmo, com o livro de versos «Distância» de um outro adepto, o sr. A[ntónio] P[edrol G[uisado], os únicos livros que a nova escola tem. Um dos livros do sr. S[á] C[arneiro] é uma novela, outro é um livro de versos. (Chamam-se respectivamente «A Confissão de Lúcio» e «Dispersão», título este último que dá maravilhosamente o estado de alma de qualquer dos adeptos da escola).

Se bem que seja fácil reconhecer quanto esta escola é doentia e perigosa, ninguém pode negar ao sr. Sá C[arneiro] extraordinárias qualidades de novelista e de prosador; pena é que o enredo das suas novelas seja inacessível ao público e que o estilo em que são escritas sofra constantemente da doença da escola. Quase o mesmo se pode dizer dos livros de versos dos srs. Guisado e Sá-C[arneiro]. Sofrem de requinte exagerado, do abuso de introspecção da escola.

Escolhemos ao acaso algumas frases, traduzindo-as cuidadosamente, para que os leitores se inteirem tanto quanto possível do que a nova escola é.

Aqui estão algumas do snr. M[ário] de S[á] C[arneiro]

Algumas do snr. A[ntónio] Guisado:

Mas, segundo me dizem em Lisboa, nada dá tão bem o exagero da escola do que a poesia seguinte, que traduzimos inteiramente e que o sr. F[ernando] P[essoa] publicou numa revista A R[enascença], que morreu à nascença:

Vê-se bem que a pretensão do sr. Pessoa é notar o seu estado de espirito perante um crepúsculo, aproveitando todas as impressões por mais pequenas que sejam, por menos relação que tenham umas com as outras. Como dissemos, «Dispersão» é o [que] mais caracteriza a escola toda. É forçoso de resto conhecer na poesia do sr. Pessoa alguns versos verdadeiramente assombrosos e alguns pontos. Esta poesia, de mais a mais, foi a que deu à escola o nome (dizem-me que provisório) da escola; parece que o

sr. Pessoa a recitava por Lisboa, e da sua primeira palavra (pauis, (...)) talhou alguém o nome «paulismo» para a escola toda.

Eis a poesia-mãe do «paùlismo»:

Não sejamos injustos. Apesar de todo o de doentio e de perigoso — pela facilidade com que se insinua — desta escola, forçoso é reconhecer aos seus adeptos incontestável talento e uma manifesta superioridade sobre quantos outros novos aparecem em Portugal, e talvez não só em Portugal. O que é lamentável é que a própria essência da inspiração deles seja doentia a mais não poder ser. Pelos extractos que demos acima, calcule-se da influência sobre o pensamento, a inspiração, e até a gramática dos novos que possa ter a escola «paulista»!.

Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création. Maria Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977.

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