Na classificação dos sistemas filosóficos...
Na classificação dos sistemas filosóficos temos a considerar duas coisas: a constituição do espírito e a natureza da ideação metafísica.
O espírito humano, por sua própria natureza de duplamente — interiormente e exteriormente — percipiente, nunca pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer; mesmo que chegue a uma concepção monística, dentro dessa concepção monística há um dualismo, mesmo que dos dois elementos constitutivos da Experiência — matéria e espírito — se negue a realidade a um, não se lhe nega a existência como irrealidade, como aparência — o que transforma o dualismo espírito-matéria em dualismo realidade-aparência; mas realidade-aparência é, para o pensamento, um dualismo.
O género de dualismo, porém, depende de, e é condicionado por, o que se considera a Realidade Absoluta. O espírito não pode admitir duas realidades absolutas: realidade envolve unidade. Mesmo, portanto, que o espírito admita dois princípios igualmente e objectivamente reais, é forçado a admitir que um desses princípios é de qualquer modo superior em realidade ao outro. Temos pois que todo o sistema filosófico envolve um dualismo e um monismo. A constituição do espírito impõe-lhe que pense dualisticamente; a noção de realidade obriga-o a pensar monisticamente. O espírito não pode construir um sistema puramente monista; e um sistema puramente dualista não seria um sistema filosófico.
Ao tentar o monismo de todo o sistema filosófico, o espírito apoia-se a um princípio qualquer. Apoia-se a um de três: ou a matéria, ou o espírito, ou qualquer outra coisa, necessariamente inconcebida em si, mas só como diversa de espírito e matéria. Por matéria entendemos o conjunto de fenómenos que só pode ser considerado como no tempo e no espaço. Por espírito o conjunto de fenómenos que directamente é considerado como passando-se no tempo simplesmente.
Nascem daqui três sistemas: o materialismo, o espiritualismo e o transcendentalismo.
O espiritualismo caracteriza-se por duas coisas: pelo seu carácter dualista — a sua admissão de uma dupla realidade — corpo e alma, natureza e Deus; e pela sua centralização na alma humana, por ter a alma humana — e daí, o espírito em geral — por ponto de apoio, por centro de seu sistema.
Destes dois elementos surge um terceiro elemento característico: que a realidade-espírito (alma-humana, espírito divino) é considerada superior à realidade-matéria (corpo humano, natureza). Entendamo-nos bem: o espiritualista tem o corpo e a natureza por tão reais (no sentido totalmente abstracto do termo) como o espírito e Deus; mas a realidade do espírito e de Deus é uma realidade permanente, ao passo que a realidade do corpo e da natureza é uma realidade contingente e transitória. — O espiritualismo opõe-se, por um lado, ao materialismo; por outro, ao transcendentalismo. Quanto ao idealismo, excepto o trancendental — esse é, como mostraremos, apenas uma forma superior da essencial doutrina espiritualista. — O materialismo tem de comum com o espiritualismo o ser dualista; diverge dele em que o ponto central do seu sistema é, não o espírito, mas a matéria; e diverge, portanto, na dedução final, porque, em oposição à doutrina espiritualista, logicamente estabelece a realidade exterior como de género superior à realidade interior. O materialismo é dualista porque admite, precisamente como o espiritualismo, duas realidades — matéria e espírito — espírito, é claro, no sentido de actividade psíquica. O materialista não nega — pois isso não se pode negar — que haja fenómenos psíquicos, que tenhamos sensações, pensamentos, sentimentos; o que nega — porque estabelece no Exterior e não no Interior o centro do seu sistema — é que o espírito, a consciência, seja mais do que uma função, um acompanhamento da matéria — tomando matéria no sentido de realidade exterior, de tudo que é concebível como por natureza contido no tempo e no espaço.
O (transcendentalista) admite, como o materialista e o espiritualista, uma dualidade (o espírito humano, por sua própria natureza de duplamente interiormente e exteriormente — percipiente, nunca pode pensar senão em termos de um dualismo qualquer), mas essa dualidade não é a da matéria e do espírito; não é a dualidade corpo-alma, matéria-espírito. É, como (conforme veremos) a do espiritualista absoluto, a dualidade Aparência-Realidade; mas, ao passo que, para o espiritualista absoluto, a Aparência é a Matéria e a Realidade o Espírito, para o transcendentalista tanto a matéria como o espírito são a Aparência: a Realidade é qualquer coisa que a ambos transcende, e de que ambos são ou manifestação, ou símbolo, ou (...) Isto é, o ponto central, o eixo do sistema transcendentalista não está nem na Natureza ou Matéria (como para o materialista), nem no Espírito (como para o espiritualista), mas noutra coisa que a Matéria e Espírito transcende.
Cada um destes três sistemas se subdivide naturalmente em três subsistemas. O espiritualismo tem três formas. Há, primeiro, o espiritualismo relativo — sistema que considera alma e corpo (natureza e Deus) como igualmente reais, objectivamente reais, ainda que não iguais na qualidade da realidade: assim o corpo (e a Natureza é (são) real (reais) mas transitório(s), contingentes; a alma (e Deus) é (são) real (reais) mas permanente(s). Este espiritualismo é o espiritualismo por assim dizer clássico ; é o de S. Tomás de Aquino e dos escolásticos em geral, o espiritualismo da fé católica. — Temos, depois, e avançando no conceito de superioridade do espírito à matéria, o espiritualismo simbólico. Para este, a matéria é real, mas é-o apenas por ser a sombra, o reflexo, o símbolo do espírito. A realidade da matéria é verdadeira, mas subjectiva-objectiva; provém-lhe propriamente de nela representar o espírito. Este é o espiritualismo dos ocultistas [...] de muitos contemplativos, como Mr. Thomas Browne, dos altos místicos, como Swedenborg e William Blake. — Há, finalmente, o espiritualismo absoluto. Intensificada a ância espiritualista chega-se a um ponto em que à matéria se nega toda a realidade, salvo a inevitável realidade lógica — isto é, a realidade perante o pensamento; visto que, para pensar a matéria visual, ilusória é preciso pensá-la; para a pensar é forçoso tê-la por ser qualquer coisa, ainda que só para o pensamento. Ser aparência é, de certo modo, ser; e ser de certo modo é ser. Todos os sistemas chamados idealistas — excepto o idealismo dito transcendental, isto é, aquele que provém de Kant — pertencem a esta categoria. Pertencem a esta categoria as metafísicas de Leibnitz e de Berkeley.
No materialismo encontram-se, do mesmo modo, três teorias. Há, primeiro, o materialismo relativo. Este admite a matéria e o espírito — ou, como aquele costuma dizer, a força e a matéria — como igualmente reais, eternamente reais, mas eternamente inseparáveis. Esta dualidade é monisticamente eterna; e constitui uma realidade exterior, do tempo e do espaço, nem há outra realidade — tal é a teoria, que o sistema exposto por Büchner representa nitidamente. — Há, depois, o materialismo (...), que, considera a realidade como física e psíquica; mas para ele o psíquico é simplesmente epifenómeno ou função do físico. É apenas real pelo físico. A realidade não é a mesma: o que verdadeiramente é real é o fenómeno físico — Há por fim, o materialismo absoluto, sistema aliás raro, mas curioso. É o de Edgar Poe, no Eureka, por exemplo. Considera o espírito como espiritualmente irreal , isto é, como matéria. Quer dizer, o espírito é uma matéria mais subtil, mas é matéria, realmente matéria, ocupando espaço material.
No transcendentalismo dão-se as mesmas subdivisões. Temos, em primeiro lugar, o transcendentalismo materialista. Para este, espírito e matéria são igualmente reais e irreais: são irreais porque não são duas coisas, mas uma, reais porque são paralelas manifestações de uma realidade que as transcende mas que lhes é a substância. Esta realidade Transcendente é concebida, porém, como incarnada naquelas duas aparências, como manifestando-se através delas sem outro modo de ser. É o sistema filosófico de Spinoza. Chamamos-lhe trans[cendentalismo] mat[erialis]ta porque não é senão aquilo, a que chamámos materialismo relativo, transcendentalizado. Como o materialism,o relativo, o transcendentalismo materialista admite duas paralelas formas, inteiramente objectivas, de realidades — matéria e espírito — mas estas existem realmente numa outra substância, que lhes é o ser, mas que não se manifesta senão através delas nem existe senão manifestando-se segundo aquele duplo aspecto. Estas duas coisas são na realidade uma única coisa que através delas duas, se manifesta, mas não existe senão naquela dupla manifestação.
Mais acima encontramos o transcendentalismo espiritualista. É um sistema raro, porque está perpetuamente tendendo ou a ser o, aparentemente mais puro t[ranscendentalis]mo met[afísico], ou a ser solicitado, por razões religiosas para um qualquer sistema espiritualista. Há um exemplo deste sistema espiritualista. Há um exemplo deste sistema em Malebranche. Para o t[ranscendentalis]ta esp[iritualis]ta matéria e espírito têm por substractum um ente que o espírito concebe — não como exterior a si, quanto possível, como faz no tr[anscendentalis]mo mat[erialis]ta, mas como interior a si.
Para Spinoza tudo é Deus, e Deus é tudo. Deus está todo nos seus sintomas. Para Malebranche (...) tudo é Deus, e Deus é tudo — mas não é só tudo; além de ser tudo é mais — é Deus. Deus suporta-se em tudo, é tudo, mas ainda lhe sobressai.
Deus, para Spinoza, só existe no tempo e no espaço, através dos seus atributos. Para Malebranche, existe no tempo e no espaço, porque existe nas coisas e nos espíritos, mas existe também fora do tempo e do espaço, em si próprio.
T[ranscendetalismo] absoluto: Deus é tudo, mas tudo irrealmente. Uma pedra não é real, como pedra. Uma pedra é uma ilusão do meu espírito. Mas como o meu espírito é Deus e a pedra é Deus, a pedra é real e irreal ao mesmo tempo.
A natureza é uma irrealidade divina.
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Mas a ideia de Deus — onde fica no espiritualismo? Fica subordinada, como ideia, à ideia central de espírito. Logo que Deus seja considerado espiritual e exterior às almas humanas estamos em espiritualismo. As duas características são essenciais; porque espiritual e interior às almas, constituindo-lhe a substância é já o transcendentalismo espiritualista, de que adiante se falará.
Dizer que um sistema tem por base, por ex., o espirito é dizer que concebe a Realidade Suprema como espiritual, como do género do espírito.
Toda a exaltação mística de Deus tende a manifestar-se numa linguagem panteísta. O espiritualista que desloque o ponto de base do seu sistema do Espírito e se incline em entusiasmo para Deus, tende imediatamente a falar transcendentalismo. Isto acontece a Platão, aos místicos cristãos repetidas vezes. Urge, porém, não tomar o anormal por característico; não classificar um sistema pelas exaltações que o põem fora de si próprio.
Há só um sistema — o transcendentalismo absoluto — que nunca pode sair fora de si próprio, porque abrange tudo.
Textos Filosóficos . Vol. II. Fernando Pessoa. (Estabelecidos e prefaciados por António de Pina Coelho.) Lisboa: Ática, 1968.
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