UM CASO DE MEDIUNIDADE
(Contribuição para o estudo da actividade subconsciente do espírito)
1. Como se induziu a mediunidade.
a) Base histérica ou histero-neurasténica (averiguar e analisar os característicos psíquicos dessas nevroses, determinar em que se relacionam com os fenómenos típicos da chamada «mediunidade» — em parte aqui, em parte em outra secção deste estudo).
b) Auto-sugestão progressiva pelo estabelecimento de uma (pelo menos relativa, mas eficazmente activa) crença na realidade espírita destes fenómenos pela leitura de obras de ocultismo e de teosofia.
c ) Elementos de sugestão, colhidos em conversa, prolongamento dos anteriores, e somando-se com
d) Elementos de sugestão hipnótica ou simili-hipnótica (a mediunidade começou a seguir a uma leve hipnose). e) O estado de depressão produzido por: 1) desgostos e perturbações várias, 2) a própria perturbação mental causada pelo aparecimento dos fenómenos mediúnicos, tanto por esse aparecimento, como pelo conteúdo das chamadas «comunicações», e 3) o conflito entre tudo isto e o basilar e normal espírito de lucidez, lógica e necessidade de precisão científicas, cepticismo filosófico e tendência para a análise raciocinada.
f) Os estímulos mentais — curiosidade quanto ao futuro, ânsia de conhecer, etc. — normalmente humanos, primeiramente suscitados por estudos astrológicos, e depois agravados pela própria presença dos factos antecedentemente descritos.
2. Progresso da mediunidade. (Marcha da doença?)
a) Declaração amorfa da escrita automática, imperfeita e desconexa (a seguir, como se disse, a uma leve hipnose, e relacionada com ela por o primeiro nome escrito, etc.).
b) Aparecimento de fenómenos de ligeira visão com aumento de fixação retiniana de imagens e uma presumida capacidade de ver a chamada «aura etérica».
c ) Aparecimento da escrita automática desenvolvidamente e depois com uma pretensa comunicação de diversos espíritos, sem resposta a perguntas, etc. (seguiu-se a escrever uma extensa carta sobre o assunto, q.n.)
d) Aparecimento (a seguir a assistência aos fenómenos interpretativos da cartomancia) de uma mímica mediúnica, sobretudo relevada na segunda sessão de cartomancia a que assistiu.
3. Concomitantes psíquicas da mediunidade.
a) Desaparecimento (salvo raras intermitências) da acção contínua e lúcida das faculdades superiores do espírito — aumento da dispersão mental, fraqueza de vontade (e de inibição sobretudo) agravada, gradual substituição das faculdades do sonho às de relação com a realidade concreta (mundo exterior} e abstracta (lógica e espírito científico).
b) Desvio inferiorizante das faculdades de imaginação, tendendo a imagem visual para substituir a ideia abstracta (como na semi-sonolência e nos cérebros inferiores — FF).
c) Enfraquecimento da sensibilidade sã e da sociabilidade, com um concomitante aumento da sensibilidade estéril e introspectiva, uma incapacidade crescente para medir a importância dos factos, um apagamento da afectividade, um acréscimo do egoísmo e da indiferença.
d) Aumento dos desvios ideativos e sentimentais característicos do temperamento, e suscitamento de outros (porventura latentes, mas, em todo o caso, normalmente de fraquíssima substância); acréscimo da irritabilidade e da excitação nervosa.
e) Debilitação física e perturbações funcionais do organismo físico.
4. Análise das chamadas «comunicações» mediúnicas.
a) Os romances do subconsciente: as comunicações não passam em geral de um produto inferior e estéril de 1) a actividade imaginadora e baixa do subconsciente funcionando, como quando durante o sono, liberto do controlo do consciente, 2) a actividade do subconsciente no que resíduo de elementos do consciente, trabalhando como que em imitação deste, 3) a actividade memoriada do subconsciente, reproduzindo elementos gravados que o consciente não atinge.
b) Ausência de elementos estranhos ao conhecimento do indivíduo. Onde parece havê-los 1) verifica-se que há erro, sendo puramente romance os «factos» apresentados (caso de Margaret Mansel); 2) verifica-se que são factos gravados na memória subconsciente, que o consciente esqueceu que lera ou presenciara; 3) verifica-se que representam previsões tiradas por uma espécie de raciocínio mais rápido e mais hábil que o consciente; 4) verifica-se que........(cabe aqui analisar os factos de previsões que se realizam. Muitas vezes estes casos não são tantos que se não possam explicar por mera coincidência, sendo imensamente maior o número dos que não se realizam; outras vezes, quando a precisão seja tal que um facto baste para ser estranho, verifica-se que há fraude; outras vezes ainda, e estas são as que restam, dando de barato que haja legitimidade nos factos, cumpre averiguar que modalidade especial tem o subconsciente como subconsciente 8 para atingir ccrtos detalhes distantes e certos detalhes futuros, observando-se sempre que esses fenómenos — serem verdadeiros — são em geral, senão sempre, dados em pessoas não só doentes — o que pouco importaria, pois teríamos que averiguar o que é a doença — mas absolutamente inferiores, mental e moralmente.
c) Ausência de ideação superior é a do medium. A expressão estilística e filosófica é a do medium, e quando não o seja, basta procurar entre os presentes ou os sugestionadores quem possa haver induzido essa ideação por sugestão. Não há caso de ideação superior em medium desacompanhado de indivíduos superiores. (Notar, em todo o caso, que a circunstância de o delírio ser frequentemente acima do nível mental do indivíduo, é característico da grande histeria — V. Richer «L’hystéro-épilepsie»).
e) As contradições e contrariedades das comunicações resultam 1) das contradições no carácter do médium, 2) da crítica do consciente ao subconsciente ao emitir esses «comunicados», 3) das sugestões múltiplas recebidas.
f ) Em momentos especiais de cansaço há elementos emanados de sugestões alheias (alcance destas sugestões).
g) Lógica da profecia — 1) ou se profetiza segundo o que se quer ou se julga bom, ou 2) segundo o que — bom ou mau — se afigura provável (como por critério astrológico), ou 3) por uma reacção do subconsciente, resultante da dúvida do consciente, se profetiza em desarmonia, por vezes subtil, com o que se disse e de que se duvidou.
h) Os elementos aparentemente inexplicáveis — 1) e.g. — a construção de horóscopos, 2) n° 406, (...)
i) A intromissão do consciente no subconsciente (o mediunismo em flagrante delito): 1) a falseação dos relatos, 2) o cálculo intrometido entre resposta e resposta nas comunicações, 3) a acção do consciente no sentido de colaborar com o inconsciente (solução das iniciais, etc.).
5. Conclusões.
a) A mediunidade resulta de um desequilíbrio mental, análogo ao produzido pelo alcoolismo, sendo muitas vezes o estado podrómico da loucura declarada. (Casos)
b) O subconsciente tem faculdades de ordem diferente do consciente, mais afinadas em certos pontos, mas absolutamente inferiores, e que, quando aplicadas nestes casos, se desviam do seu fim original, que é a conservação do organismo.
c) Nada, até hoje, prova a presença de espíritos comunicantes, sendo para isso se provar preciso demonstrar primeiro que nas faculdades, ainda mal estudadas, do subconsciente, não cabe elaborar todos os fenómenos a que se chama de mediunidade.
d) A mediunidade é um estado mórbido participante daqueles que produzem de um lado a loucura, do outro o crime. O crime, a loucura o suicídio são os aboutissements inevitáveis da autointoxicação mediúnica. Quando se não chegue a tanto, chega-se à loucura moral, à perversão sexual, e à incapacidade para a vida social pela absoluta desagregação dos instintos sociais, sem uma correspondente compensação social, como no génio e no talento, onde a amoralidade é frequente, mas onde o serem génio e talento compensam a falha.
e) Análogos ao do espiritismo contemporâneo temos no passado as epidemias dançantes da idade média e os outros fenómenos estudados por Richer nos apêndices do seu livro sobre a Grande Histeria.
f) O espiritismo tende, sem compensação alguma, a atacar o espírito científico: nem a arte, nem a moral, nem a própria religião ganham com isso. A arte não se faz pelo subconsciente em liberdade, mas pelo subconsciente dominado. A moral não se faz com a perda da inibição e a anulação da vontade, que são as primeiras necessidades da moral. A religião não pode assentar no desenvolvimento do egoísmo, nem na quebra dos laços sociais.
g) O espiritismo devia ser proibido por lei, pela mesma razão que as publicações obscenas e os espectáculos tendentes a suscitar nos cérebros fracos o vício e o crime. (?).
h) Para bem da civilização grega que é a nossa, embora disfarçada, devemos renunciar a esses elementos índios, persas, e de outras raças de civilização inferior que pelo cultivo constante das faculdades inferiores, tendem a destruir, no indivíduo, a supremacia da razão, na espécie o instinto gregário, na civilização actual a sua base de ciência e arte que herdámos da nossa mãe comum, a Grécia.
i) Quando muito, os fenómenos do ocultismo e do espiritismo deviam ser, como na antiguidade, pertença de uma seita restrita, e não lançados pela sociedade dentro, como se fossem para toda a gente.
j) A força criadora do Universo deu-nos, através dos sentidos (talvez limitados) que nos concedeu, a realidade exterior como tipo de Realidade, e o nosso espírito apenas como perceptor dessa Realidade. Sair daqui é violar as leis fundamentais da Natureza e de Deus. O que Deus fez oculto (se Deus fez alguma cousa oculta) é para se conservar oculto. Se não, ele tê-lo-ia feito claro.
k) O actual movimento ocultista resulta a) da desagregação do cristianismo, que luta, a todo o transe, para se conservar sob todas as formas que lhe apareçam, b) da nossa civilização internacional que tornou possível aos elementos emanantes de civilizações como as da Índia e da China de chegarem até nós, c) da incapacidade de uma geração neurastenizada pela rapidez excessiva do progresso moderno, industrial, cultural e científico, em se adaptar de pronto ao tipo de mentalidade que é necessário que corresponda às ideias-fontes desse progresso.
Græcia Mater, dirige-nos !
Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et création. Maria Teresa Rita Lopes. Paris: F. C. Gulbenkian, 1977.
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