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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O SENSACIONISMO (PROLEGÓMENA)

1. No princípio, na Grécia — e depois em Roma, essa América da Grécia — reinou o Objecto, a Coisa, o Definido. Existia, de um lado, a Coisa; do outro existia, em bloco, a Sensação, a sensação imediata e vivida. E assim, quando a arte era do Objecto, o objecto surgia perfeito e nítido na realização. E, como o espírito concebe sempre o sujeito à semelhança do objecto, as sensações (quando a sensação se tornava sensação da sensação, introspectiva, autoanalítica) eram concebidas como concretas, definidas, separadas umas das outras. Por isso não havia vago, indeciso, penumbra na poesia de alma dos gregos e dos romanos. Tudo está detalhado e detalhado em plena luz.

A sensação da realidade era directa nos gregos e nos romanos, em toda a «antiguidade» clássica. Era imediata. Entre a sensação e o objecto — fosse esse objecto uma coisa do exterior ou um sentimento — não se interpunha uma reflexão, um elemento qualquer estranho ao próprio acto de sentir. A atenção era por isso perfeita, cingia cada objecto por sua vez, delineava-lhe os contornos, recortava-o para a memória. Quando era dirigida para o interior, [...] incidia atentamente sobre cada detalhe da vida espiritual, concretizando-o pela própria acuidade equilibrada da atenção.

2. Passada pelas almas a longa doença chamada cristianismo, esmiuçado doentiamente o espírito por si próprio, a clareza da sensação perturbou-se. A presença no pensamento das ideias de espírito, de Deus, de outra vida, concebidas como o eram, levaram a uma decomposição da Realidade, qual os gregos a haviam concebido. Entre a sensação e o objecto dela — fosse esse objecto uma coisa exterior ou um sentimento — intercalara-se todo um mundo de noções espirituais que desvirtuava a visão directa e lúcida das coisas. Os gregos haviam tido dos deuses e do Olimpo uma noção tal que eles lhes apareciam como simili-humanos, como meros prolongamentos da humanidade, concebidos, porém, sub specie humanitatis, como maiores, mais poderosos, mais livres; não como opostos, senão naquilo em que «superior» é oposto a «inferior». A própria sua imortalidade não era inumana, porque era uma eternidade percorrida humanamente, por uma eterna duração fora.

(O conceito do super-homem de Nietzsche é um conceito pagão.. Mas compare-se o anti-intelectualismo dele).

Outras eram as noções cristãs. Aqui o invisível, o ultra-humano, o divino, por grosseiramente que fosse concebido, era-o como oposto à Realidade Exterior. Ora uma alma que encara as coisas com tal conceito no espírito, não as pode encarar directamente, muito embora queira ter essa preocupação. A noção de alma, concebida como diferente do corpo e superior a ele, começa por tornar menos importantes ao espírito as coisas. A noção de Deus substituía-se ao conceito do conjunto das coisas, a que se chamava a Natureza. A noção de sobrenatural convidava a uma descrença na utilidade, porque na estabilidade, do concreto. Esta nova noção do milagre levava ao desprezo, quando não à indiferença, pela possível existência das leis naturais.

Isto, se levava a um enfraquecimento da atenção, a uma perturbação da visão, a uma incompreensão instintiva dos factos, também por sua vez tinha origem precisamente numa tibieza da vontade, numa perturbação da visão, numa incompreensão instintiva dos factos que tinham de comum os gregos e romanos decadentes, precisamente porque tais fenómenos de degenerescência psíquica eram naturais de decadentes, e os bárbaros invasores, porque tais fenómenos neles eram resultado da sua primitividade e da sua incultura. Um mundo formado com elementos assim semelhantes, por degenerados e primitivos, não podia viver numa religião que correspondia a um estado relativamente são do espírito, onde a atenção era certa e nítida, os sentimentos destrinçados e como que lógicos, e a vontade, portanto, quanto é humanamente possível, segura e certa. Da mistura de raças resultou mais impuro ainda o estado de espírito típico do homem da época. Num mundo assim psicado o triunfo devia pertencer àquela religião que mais se lhe adaptava; e que mais se adaptava, também, ao meio social e às ideias que ele impunha. O cristismo estava em estas condições. De sua natureza dispersivo e sentimental, caía bem ao estado de espírito que a decadência criara; monoteístico, tinha qualquer coisa de imperial, qualquer coisa que bem se coadunava com mentalidades nascidas à sombra do império romano, e do [. . . ] prestígio longínquo do nome do Imperador.

[...] heresias houve até que, por fim, o cristismo fosse adquirindo elementos de domínio, transformando-se, adaptando-se. Na Idade Média ele atingiu o seu esplendor unitário.

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Qual a perturbação que se nos revela nos poemas dos grandes poetas da Renascença, abrangendo com o [...] Dante e Petrarca [?] — com respeito aos antigos, na visão da Natureza?

Os poetas cantam as coisas indirectamente, vendo-as já através da sua emoção. Vêem-se nitidamente, é certo, mas 1) acompanhadas de uma emoção que se sobrepõe às coisas, 2) fundidas umas nas outras pelo sentimento da sua fraternidade em Deus, por serem todas criadas por Deus (S. Francisco de Assis).

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Como a noção do exterior nunca era desacompanhada da noção de que era criado por Deus, de que a alma lhe é superior, de que aquilo era temporal e transitório, segue que a noção (visão) do objecto exterior vem sempre, espontaneamente, como visão, acompanhada duma emoção deformadora dele.

A sensação é nitidamente do exterior mas, ao mesmo tempo, esse sentimento (ou sensação) do exterior, do físico, é sempre acompanhada por uma obscura consciência do interior, do psíquico.

De aí dois factos. A arte grega, como se baseara na lucidez da atenção, era a arte 1) do equilíbrio, porque era do perpétuo contido pelo exterior, 2) da harmonia, porque era a arte feita por gente com a vontade educada; 3) do fasto [?], isto é, da acção humana, por ser essa a manifestação típica de gente de atenção clara e lúcida. A arte da Renascença, dadas as transformações indicadas, passa a ser 1) do facto físico-psíquico —, Shakespeare [...] ( . . . ).

Pode chamar-se à arte da Renascença a arte do físico e do psíquico; a atenção divide-se, mas a preocupação do físico é acompanhada sempre da percepção do psíquico. Mas não se fundem: coexistem. A nitidez absoluta, a lucidez forte desaparece. A atitude é, no fundo, a mesma do que a antiga; apenas muda [?] o centro da atenção, que é, aqui, dirigida sobre a sensação e não já sobre o objecto exterior ou interior.

Explicando melhor: o homem da Renascença olha para as coisas como os gregos, e olha para as almas como o grego; mas, ao passo que o grego olhava primeiro para as coisas exteriores, e para as almas depois, moldando o seu conceito primordial de realidade sobre a matéria, sobre os objectos exteriores, o homem da Renascença olhava primeiro para a alma e depois para as coisas exteriores, moldando as coisas exteriores pelo seu conceito da alma. Esse conceito da alma, como era ainda em parte o conceito antigo, era ainda nítido, porque tinha ainda qualquer coisa das suas origens e tinha sido moldado sobre a noção dos contornos das coisas exteriores. De modo que era relativamente ligeira a deformação que as coisas sofriam, porque pequena era a deformação que o conceito de alma havia sofrido. Mas havia-se dado o facto capital de a alma passar a ser o centro da atenção dirigida.

(Deformação do Renascimento)

3. Romantismo.

Progresso da centralização da atenção na alma. A sensação passa a ser a realidade primordial. O objecto exterior cessa como independente da sensação, passa a ser sentido apenas como sentido. Todas as manifestações românticas e cisromânticas pertencem a esta categoria, inclusive o chamado realismo.

1916?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

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