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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

A obra de arte, fundamentalmente, consiste numa interpretação objectivada...

A obra de arte, fundamentalmente, consiste numa interpretação objectivada duma impressão subjectiva.

Difere, assim, da ciência, que é uma interpretação subjectivada de uma impressão objectiva, e da filosofia, que é, ou procura ser, uma interpretação objectivada de uma impressão objectiva.

A ciência procura as leis particulares das coisas — isto é, aquelas leis que regem os assuntos ou objectos que pertencem àquele tipo de coisas que se estão observando. A ciência é uma subjectivação, porque é uma conclusão que se tira de determinado número de fenómenos. A ciência é uma coisa real e, dentro dos seus limites, certa, porque é uma subjectivação de uma impressão objectiva, e é, assim, um equilíbrio.

A filosofia trabalhará sempre em vão porque procura objectivar. . .

Na arte temos a distinguir três partes. A arte envolve uma impressão, ou ideia, sobre a qual se trabalha; envolve uma interpretação dessa ideia ou impressão de modo a torná-la artística; e envolve, finalmente, uma coisa de que se tem essa impressão ou ideia.

A arte obedece, portanto, a três critérios exteriores. Tem que obedecer às leis que regem toda a impressão ou ideia. Tem que obedecer às leis que regem toda a interpretação. E tem que obedecer às leis que regem toda a objectivação. Quais são, em cada caso, essas leis?

Primeiro, quais as leis que regem a impressão ou ideia? Estas leis são três. Abrangem, como se vê, o elemento subjectivo da arte. 1.°: Uma impressão ou ideia é perfeita e típica na proporção em que é característica do indivíduo que a tem, isto é, na proporção em que nessa ideia se revela a) o temperamento do indivíduo, b) todo o temperamento do indivíduo (o mais possível do temperamento do indivíduo), c) o temperamento do indivíduo o mais harmonicamente disposto dentro de si que seja possível ( analyse this last element ) . De modo que o elemento subjectividade da arte envolve a originalidade como critério objectivo ( note if this expression is good ) .

Segundo, quais as leis que regem a objectivação? Vejamos o que quer dizer objectivação. A palavra implica a redução da ideia, ou seja o que for (que há-de ser ideia, e não objecto, para poder dizer-se que se objectiva) à categoria de objecto; isto quer dizer, à categoria de coisa análoga a qualquer coisa que ocupa o mundo exterior. São três as leis que regem a determinação do objectivo como tal. 1.º Um objecto tem de ser limitado, distinto dos outros objectos. 2.º Um objecto é composto de partes formando um todo; essas partes existem nesse todo em virtude de serem partes de tal todo, nem se consideram partes senão em relação a tal todo; e o todo, podendo ser considerado como uma coisa independentemente das partes, só o pode ser em virtude da harmonização das partes na formação desse todo. 3.º (deve ser 1.º). Cada objecto é real na proporção em que pode ser observado em diferenças grandes por o maior número possível de pessoas. Temos, pois, como leis da objectivação: 1.º (3rd above) A lei da verosimilhança. 2.º ( 1st above) A lei da não-repetição. 3.º (2nd above) A lei da relação de interdependência entre o todo

e as partes de que é composto. (A lei da unidade harmónica. Porque, quando observamos um todo, observamo-lo através das partes que o compõem, mas, vendo-as de golpe, somamo-las de chofre na ideia desse todo).

Terceiro. Quais são as leis que regem a interpretação. Entende-se que por interpretação se entende apenas um alto grau — o mais alto — do fenómeno envolvido na sensação de qualquer coisa. Essas leis são também três: 1.° Uma interpretação é tanto mais completa quanto mais conserva todas as relações do objecto interpretado, a sua harmonia especial e típica tanto quanto possível. 2.° Uma interpretação é tanto mais perfeita quanto mais consegue fazer esquecer o objecto interpretado na própria interpretação. (É assim que uma tradução é perfeita quando parece não ser uma tradução) (...).

1916?

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966.

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