O Prof. Salazar tem, em altíssimo grau, as qualidades secundárias…
O Prof. Salazar tem, em altíssimo grau, as qualidades secundárias da inteligência e da vontade. É o tipo do perfeito executor da ordem de quem tenha as primárias.
O chefe do Governo tem uma inteligência lúcida e precisa; não tem uma inteligência criadora ou dominadora. Tem uma vontade firme e concentrada, não a tem irradiante e segura. É um tímido quando ousa, e um incerto quando afirma. Tudo quanto faz se ressente d'essa penumbra dos Reis malogrados.
Quando muito, na escala da governação pública, poderia ser o mordomo do país.
Faltam-lhe os contactos com todas as vidas — com a vida da inteligência, que vive de ser vária e, entre os conflitos das doutrinas, não sabe decidir-se; com a vida da emoção, que vive de ser impulsiva e incerta; com a vida da (...)
O Chefe do Governo não é um estadista: é um arrumador. Para ele o país não se compõe de homens, mas de gavetas. Os problemas do trabalho e da miséria, como há ele de entendê-los, se os pretende resolver por fichas soltas e folhas móveis?
A alma humana é irredutível a um sistema de deve e haver. É-o, acentuadamente, a alma portuguesa.
Às vezes aproxima-se do povo, de onde saiu. E traz-lhe uma ternura de guarda-livros em férias, que sente que preferiria afinal estar no escritório.
É sempre e em tudo um contabilista, mas só um contabilista. Quando vê que o país sofre, troca as rubricas e abre novas contas. Quando sente que o país se queixa, faz um estorno. A conta fica certa.
O Prof. Salazar é um contabilista. A profissão é eminentemente necessária e digna. Não é, porém, profissão que tenha implícitas directivas. Um país tem que governar-se com contabilidade, não pode governar-se por contabilidade.
Assistimos à cesarização de um contabilista.
Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
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