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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

O ANDAIME

O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado

Quantos anos foi de vida!

Ah, quanto do meu passado

Foi só a vida mentida

De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio

Sossego sem ter razão.

Este seu correr vazio

Figura, anónimo e frio,

A vida vivida em vão.

A esperança que pouco alcança!

Que desejo vale o ensejo?

E uma bola de criança

Sobe mais que a minha esperança.

Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves

Que não sois ondas sequer,

Horas, dias, anos, breves

Passam — verduras ou neves

Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha;

Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,

Gulosas da margem ida,

Que lembranças sonolentas

De esperanças nevoentas!

Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me

Quando estava já perdido.

Impaciente deixei-me

Como a um louco que teime

No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas

Que correm por ter que ser,

Leva não só as lembranças,

Mas as mortas esperanças —

Mortas, porque hão-de morrer.

Sou já o morto futuro.

Só um sonho me liga a mim —

O sonho atrasado e obscuro

Do que eu devera ser — muro

Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me

Para o olvido do mar!

Ao que não serei legai-me,

Que cerquei com um andaime

A casa por fabricar.

s. d.

Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).

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1ª publ. in Presença , nº 30-32J. Coimbra: Jun. 1931.