Podem os elementos militares, que promoveram o pronunciamento recente,
Podem os elementos militares, que promoveram o pronunciamento recente, alegar que não fazem política porque procuram simplesmente manter a ordem, moralizar os serviços públicos e administrar. Seja, mas o facto é que se não pode deixar de fazer política ao fazer política. Limitar a actividade política à manutenção da ordem e à administração é uma doutrina política: é o conservantismo simples, que defende a simples estabilização da vida nacional, em oposição ao conservantismo reformista, que procura impor-lhe um quadro de instituições em qualquer modo semelhantes a instituições do passado.
Está certo, e achamos que está bem, que o Exército se declare partidário do conservantismo simples: é uma das doutrinas políticas mais sãs e mais úteis, pois quem não buscar reformar, mas só administrar, dificilmente causará perturbações sociais. Não as poderá, mesmo, causar, a não ser que administre estrondosamente mal. Mas a administração estrondosamente má deriva, quase sempre, da preocupação de fins não administrativos. Digamos o paradoxo (porque dizer paradoxos faz bem à alma): o Exército reformará se não quiser reformar. Mais adiante daremos os pormenores desta orientação. O que está bem, repetimos, é que o Exército se declare partidário do conservantismo simples; o que não está bem é que se declare partidário de coisa nenhuma, como se fosse composto de poetas decadentes.
A parte da população que domina politicamente é aquela que se ocupar de política; e a que se ocupa de política divide-se naturalmente em partidos. "Ir contra os partidos" é portanto uma expressão absolutamente destituída de sentido. Só verdadeiramente "vai contra os partidos" quem é indiferente em matéria política. Desde que tenha unia opinião política activamente entra necessariamente para um partido qualquer, esteja ou não "filiado" nele, com cartão de identidade e pagamento de quota. Partidos políticos são todos os que são partidos e fazem política, desde os reaccionários da direita (integralistas) até aos reaccionários da esquerda (comunistas e sindicalistas revolucionários). Quando o Exército declara que se moveu contra os políticos, constituiu-se, ao assim se mover, em partido político, e, na realidade, foi não contra os partidos políticos, mas contra os outros partidos políticos — o que é diferente e já faz sentido.
Pode alegar-se que por "partidos políticos" se entende os partidos políticos corruptos. Esta frase também não tem sentido. Políticos corruptos chamamos todos nós aos que são de partidos diferentes do nosso; é uma das amabilidades naturais do espírito humano. Depois, os partidos políticos que vivem em determinado meio são necessariamente reflexos do estado geral desse meio, pela simples razão que é nesse meio que nasceram e existem, e não em outro meio qualquer. Os partidos políticos, em determinado país e determinada época, têm todos a mesma mentalidade, têm todos virtualmente o mesmo grau, pouco ou muito, de corrupção. Há uma ressalva, que propriamente o não é, a fazer. Os partidos de governo — isto é, os partidos que frequentemente governam, e por isso, em geral, os maiores — agregam mais videirinhos e mais interesseiros, pela simples razão de que os videirinhos e os interesseiros buscam naturalmente os partidos que os podem empregar e recompensar, e esses são, naturalmente, os partidos que governam, ou frequentemente governam, e não os que nunca vão ao poder. O Partido Democrático deve a este facto, de ser um partido frequentemente no governo, a enorme quantidade de interesseiros de que se compõe; não o deve a qualquer particularidade da sua constituição íntima, ou das doutrinas que professa e em torno das quais se formou e mantém. Por outro lado, os partidos tipicamente de oposição — isto é, os que não vão ao poder, ou não podem ir, ou dificilmente podem ir — agregam, mais que os outros, os elementos perturbadores e anti-sociais, e fazem-no na proporção em que são extremistas (da direita ou da esquerda) adentro do seu oposicionismo. É fácil de compreender a razão: partidos de combate, são tanto mais de combate quanto menos provável têm o poder próximo, e são tanto mais agressivamente de combate quanto mais longe se sentem, pelas próprias doutrinas que professam, da posse, ou da posse fácil, desse poder. Os indivíduos de instintos criminosos convergem naturalmente para esses partidos, e para as doutrinas que defendem, porque esses partidos e essas doutrinas lhes servem instintivamente de apoio e de alimento aos maus instintos. Daí, os bombo-sindicalistas; daí os chamados "trauliteiros".
Metade do país é monárquico; metade do país é republicano. O problema do regime não tem, pois, solução nenhuma. É claro que os partidários de cada tipo de regime dizem que a maioria está com eles: o que haveriam eles de dizer? Mas este é o facto — os partidários dos dois regimes equilibram-se numericamente. Perante o argumento do número, nenhum dos regimes é portanto mais legítimo que o outro. Por qualquer razão, que não nos compete investigar, os republicanos estão mais organizados que os monárquicos; noutras palavras, a maioria republicana activa é mais activa que a minoria monárquica activa. É por isso que há República; é por isso que a República se mantém; é por isso que legitimamente a República deve manter-se. Por isso — tenhamo-lo bem presente — e não porque a República seja geralmente superior à monarquia, ou particularmente superior no nosso caso. Defendamos pois a República sem ser por qualquer espécie de republicanismo. Defendamo-la como correspondendo ao "facto", por oposição tanto ao "direito" como à "teoria". Mas tenhamos consciência — e tenham-na os governantes — de que é por isto que a devemos defender e manter. Abstenhamo-nos de lhe dar vivas, para que nos abstenhamos de ofender aquela metade da população a quem esse regime não agrada, mas que o aceitaria, do mesmo modo que os autores deste manifesto, logo que constantemente lhe não estejam lembrando a existência dela.
Toda a revolução é essencialmente inútil. O indivíduo é um produto de dois factores — a hereditariedade e o meio. Dois indivíduos nascidos no mesmo meio são diferentes pela hereditariedade (pois mesmo que sejam irmãos, há na hereditariedade o factor chamado "variação") e são semelhantes pelo meio. Todo o agrupamento formado em determinado meio — como é formado pela aproximação dos indivíduos seus componentes, e esses indivíduos se aproximam e se entendem por o que há neles de comum, que é o que neles é produto do meio — é pois um reflexo desse meio. O agrupamento que faz uma revolução tem pois a mesma mentalidade e o mesmo carácter que o agrupamento que essa revolução derruba e substitui. Uma revolução pode pois definir-se "um modo violento de deixar tudo na mesma".
Como, pois, se reforma uma sociedade? É simples: por um movimento não colectivo, isto é, por um impulso puramente individual. Há dois tipos de indivíduos em que a influência do meio é subordinada à da hereditariedade: são as duas variações extremas chamadas o louco e o génio — variações, aliás, aparentadas, pois o génio, seja o que for socialmente, é biologicamente loucura. Não há reforma social que não parta de um homem de génio. Desse homem de génio passa para uma pequena minoria, dessa pequena minoria para uma minoria maior, até que alastra para a sociedade inteira. Não é, pois, inteiramente absurdo o conceito "providencialista" da vida das sociedades: a civilização é obra de homens de génio, e o...
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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