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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[2] – Considerei o caso desta maneira – disse o Guedes.

— Considerei o caso desta maneira — disse o Guedes. — Ou a carta foi tirada por uma pessoa só, sem combinação com outra, ou foi tirada por alguém em combinação com alguma outra pessoa. Na primeira hipótese, não podia ter sido tirada senão pela criada velha — única pessoa que estava em casa para esse efeito, pois me pareceu que o petiz era pequeno de mais para receber e se desempenhar de uma incumbência desse ordem, se alguém lha tivesse dado. Na segunda hipótese, e não falando nunca no petiz, é claro — a combinação podia ser uma das seguintes: entre marido e mulher, entre marido e criada, entre os três, e entre o Simas e a criada.

Pus de parte a hipótese da combinação entre os três. Com os três combinados, não era preciso arranjar-se uma trapalhada tão misteriosa e tão incompreensível; em pouco tempo se arranja qualquer coisa com mais jeito, qualquer coisa que desorientando a polícia (se era intenção consultá-la, como foi), em todo o caso tornasse possível recaírem as suspeitas sobre as pessoas estranhas à casa, não as fazendo recair só sobre as pessoas do plano.

Pus de parte a combinação entre marido e mulher, porque esses estavam ausentes de casa, e a criada garante que a carta estava em cima da mesa quando a porta da sala se fechou à chave. Só podiam roubar a carta por intermédio da criada, e isso levar-nos-ia à combinação entre os três, que eu já tinha posto de parte.

Mais provável era a combinação entre um dos cônjuges do casal e a criada e, das duas hipóteses, é mais provável a de a combinação ser entre o engenheiro e a criada, pois ela era criada velha da casa dele, e não da casa da mulher, e a sua dedicação era pois naturalmente muito maior por ele do que pela mulher, qualquer que fosse a dedicação por esta. Por outro lado, as circunstancias apontavam mais para uma combinação em que a mulher estivesse envolvida — ela é que tinha tido a ideia histérica, ou fingidamente histérica, de ir passear de modo a o Simas os não encontrar em casa; ela é que tinha tido a ideia de pôr a carta em cima da tal mesa e fechar a porta à chave, isto é, de arranjar o cenário onde todo este sarilho se deu. Mas não me parece provável que a mulher fosse estabelecer com a criada velha dos pais do marido dedicada como era a ele, uma combinação que, fosse lá o que fosse, era dirigida contra o marido de qualquer maneira. Assim, sem serem redondamente impossíveis, as duas hipóteses eram improváveis. E considerei-as ainda mais quando reflecti que ficava de pé a inutilidade de arranjar um mistério desta ordem, e de fazer depender a sua execução de uma criada, que não era muito de supor pudesse resistir a um interrogatório da polícia.

Quanto à hipótese de uma combinação entre a criada e o Simas, pu-la de parte também: a criada mal conhecia o Simas, e, embora já aqui não fosse muito absurdo o mistério, pois a carta tinha que desaparecer em condições criadas por outros, havia ainda assim várias maneiras muito mais práticas de arranjar o caso, e esta trapalhada nem era de ordem de ocorrer a uma criatura boçal como a criada, nem a um homem de negócios como o Simas.

Fui levado pois a considerar como de máxima probabilidade a carta ter sido tirada por uma pessoa só, agindo independentemente. O marido e a mulher não eram, com certeza, pois estavam fora de casa Havia, pois, que escolher entre a criada e o Simas. A criada, porém, diz que logo que abriu a porta viu que a carta não estava em cima da mesa. O Simas não tinha ainda entrado sequer na sala. Estamos pois na hipótese de que a criada tirou a carta, e por sua conta, ou então por conta de qualquer pessoa que não está entre as que conhecemos. Não vejo maneira, em boa lógica, de se fugir disto.

Ora, doutor, confesso que os meus dois interrogatórios da criada me não deixaram muito satisfeito com esta hipótese apesar de eu não ver hipótese melhor. O doutor sabe que estou muito habituado a lidar com criminosos baixos, isto é, vulgares ou gente do povo, e que toda essa gente conheço eu muito bem. Têm às vezes manhas que enganam pessoas muito mais inteligentes do que eu, mas a mim é raro que enganem. E, doutor, isto não é argumento, mas é uma certeza minha, a minha impressão directa da criada é que ela não teve nada que ver com o caso. E é nisto que eu estou.

Guedes deitou o cigarro para o cinzeiro e apoiou as mãos nos joelhos. Quaresma sorriu para ele e tirou uma fumaça do charuto.

— Tudo isso é perfeitamente lógico, mas um tanto ou quanto inconcludente.

— Absolutamente inconcludente... E eu vim cá maçar o doutor para ver se me dizia se há qualquer processo de investigação, qualquer orientação que eu possa tomar para ao menos ficar na pista do mistério. O doutor julga possível, pelo menos com os dados que tenho, resolver o mistério?

— Já o resolvi — disse o Dr. Quaresma.

— O quê? — entregritou o Guedes.

Os dados são absolutamente suficientes para a solução total do problema. Já o resolvi totalmente.

— Totalmente em que sentido, doutor?…

— No sentido de que sei quem tirou a carta, como foi tirada, e qual era o seu conteúdo.

s.d

Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986

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«A Carta Mágica». 1ª publ. in A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa . Fernando Luso Soares. Lisboa: Diabril, 1976