[3] – Em todo o caso onde há crime, ou se presume…
— Em todo o caso onde há crime, ou se presume que há crime — disse o Dr. Quaresma —, há que considerar, depois de o facto estar definitivamente estabelecido, cinco circunstâncias diferentes, todas elas relativas ao crime, ou ao crime suposto, e todas elas entre si relacionadas, de modo que, ignoradas umas, a elas se possa chegar por meio das que são conhecidas. E o processo será sempre o mesmo: primeiro, determinar bem quais dessas circunstâncias são conhecidas; segundo, sendo elas conhecidas, determinar se são inteiramente conhecidas, ou se o não são inteiramente; terceiro, fazer por tornar inteiramente conhecidas aquelas circunstâncias que o estejam imperfeitamente. Feito isto, estaremos noutro capítulo da investigação lógica; por agora limitemo-nos a este.
»As cinco circunstâncias, em que falei, relativamente a um crime, ou presunção de crime, são as seguintes: primeiro, onde foi cometido; segundo, quando foi cometido; terceiro, como foi cometido; quarto, por que foi cometido; quinto, quem o cometeu? As duas primeiras circunstâncias são materiais, as duas últimas imateriais; a terceira participa das duas.
»No caso presente, e partindo do princípio aceitável, ainda que não lhe possamos chamar definitivamente assente (tal é a confusão que os testemunhos directos produzem), de que o crime (isto é, o roubo da carta — assim o consideremos, sem mais exame de momento) foi praticado na sala da casa do engenheiro, e entre as horas de saída dele e da mulher e a da chegada do destinatário da carta, sabemos já, perfeitamente, o onde e o quando do crime. Se não há qualquer vício, ou viciação do testemunho, temos estes dois pontos por assentes.
»Os outros três pontos, porém, são obscuros. Não sabemos, de início, como a carta foi tirada; não sabemos, visto desconhecermos, até por presunção, o seu conteúdo, por que motivo seria tirada; e não sabemos quem a tirou.
»Estes três pontos, digo, são obscuros. Vejamos, porém, se são igualmente obscuros. Logo à primeira vista, descobrimos uma coisa: que, ao passo que o autor do crime é desconhecido, e que o motivo do crime é desconhecido, o modo do crime não só é desconhecido, mas é estranho. Ora ser estranho é já alguma coisa; do que se sabe que é estranho, não se pode dizer que se não sabe nada, por isso mesmo que se sabe que é estranho, e isso é já saber-se alguma coisa.
»Entramos agora no segundo estádio da nossa investigação. Ela resume-se em dois processos lógicos: primeiro, qual dos elementos desconhecidos é menos desconhecido? Segundo, qual dos elementos desconhecidos é mais estranho? O mais estranho será mais fácil como elemento de investigação, porque quanto mais estranho é o facto, em menor número são as hipóteses que o podem explicar.
— Porquê, doutor? — perguntou Guedes.
— Porquê, o quê? — interrogou o Dr. Quaresma.
— Por que é que, quanto mais estranho é um facto, menor é o número de hipóteses para o explicar?
— Porque o estranho é o invulgar, e há evidentemente menos causas para o invulgar do que para o vulgar. Se amanhã aparecer morto numa rua de Lisboa um homem que assassinaram com uma facada, você, só pela facada (não me refiro agora à identidade do homem e das conclusões que se possam tirar dela) não poderá concluir muito quanto à natureza do criminoso. Se esse homem tiver sido morto por uma punhalada de um punhal delgado, restringe-se forçosamente o número de criminosos possíveis. Se tiver sido morto por uma seta, poderá haver dificuldade material em acertar com o criminoso, mas não haverá dificuldade em desde logo eliminar um grande número de criminosos. Você compreende, não é verdade?
— Perfeitamente.
— Ora neste caso — prosseguiu Quaresma —, o pouco que se conhece e a estranheza reúnem-se no mesmo elemento de investigação: no modo como o crime se praticou. É sobre este elemento, pois, que tem que incidir o seguimento da nossa investigação.
»Vejamos bem em que consiste a estranheza. Consiste no desaparecimento de uma carta de um quarto hermeticamente fechado. Apertemos mais, logicamente: trata-se do desaparecimento de um objecto inanimado de um quarto fechado. E agora, meu caro Guedes, apertemos ainda mais, e chegamos ao ponto que você não viu. Esse ponto é a natureza do objecto desaparecido. Você considerou o desaparecimento de uma carta de um quarto fechado como análogo ao desaparecimento de qualquer objecto inanimado de um quarto fechado. Você não considerou que uma carta é um objecto especial, olhando a capacidade cúbica. Sim, uma carta não é um cadáver nem um caixote: é um objecto pequeno, principalmente caracterizado, em geral, pela sua extrema chateza. Em poucas palavras, uma carta é um objecto inanimado que sai por uma fisga, por uma greta, ao passo que o mesmo não acontece a objectos, inanimados ou não, de maior espessura.
— Ora bolas! — disse o chefe Guedes. — Sinto vontade de ir aprender a andar.
— Isto é simples, não é? — perguntou Quaresma.
— Não me fale mais nisso, doutor! Continue...
— O problema, assim visto, transforma-se logo. Não se trata do desaparecimento de um objecto de um quarto hermeticamente fechado. Trata-se do desaparecimento de um objecto chato, que se no quarto há fisgas ou gretas, por onde caiba, não desaparece de um quarto hermeticamente fechado quanto a esse objecto. Expus bem?
— Mais que muito bem, doutor. Ande lá para diante...
— Ora que fisgas ou gretas haveria na sala do engenheiro? Fechadas as janelas, é de presumir que não houvesse aí nenhumas. A casa, pelo que você me disse, é de boa construção, e nessas casas as janelas são cuidadas nesse sentido; além disso, a saída pelas janelas não parece muito indicada, dado que não são de varanda e que são num segundo andar alto.
»Restam-nos as fisgas ou gretas por baixo das portas, e essas com certeza existem, porque em toda a parte existem, excepto onde um tapete ou oleado encosta mesmo à porta, e, ainda assim, é incómodo se ela não abre para fora. Podemos resumir, pois, que há duas saídas possíveis para uma carta, nesse quarto já não hermeticamente fechado: a greta por baixo da porta de entrada, e a greta por baixo da porta fechada. Ora, como é a porta fechada que está em linha com a mesa pequena onde foi posta a carta, é a greta que está por baixo dessa porta que está naturalmente indicada como o ponto de saída possível.
»Consideremos, agora, de que modo se pode fazer sair a carta de cima da mesa para fora do quarto, através dessa greta por baixo dessa porta. Não há muito que pensar: um fio ligado à carta por um alfinete ou outra prisão qualquer de pouco volume e altura; esse fio, preliminarmente preparado, passado do corredor por baixo da porta, até à mesa; (com o alfinete na ponta) a colocação da carta em cima da mesa, prendendo ao alfinete que já lá estaria; fechada a porta, a pessoa que preparava isto tudo, saía para o corredor, puxava o fio e a carta vinha a reboque pela sala fora, passava por debaixo da porta e desaparecia para sempre. Ora...
O Chefe Guedes ergueu-se da cadeira, com cara entomatada e, dando um formidável murro na mesa, pronunciou uma série de exclamações que, como constavam principalmente de palavras excluídas dos dicionários vulgares, e esta narrativa não pretende senão servir-se das comuns, não serão aqui transcritas.
— Perdão, doutor... — disse o Guedes, e tornou a sentar-se.
— Uma coisa facilitava extraordinariamente esta manobra; quero crer, até, que talvez fosse o que de algum modo a sugerisse: a cor comum do tapete da sala e do pano da mesa. Um fio de retrós verde forte, ou um fio de retrós verde vulgar duplicado, qualquer destas coisas serviria.
»E, agora, tendo determinado o único modo provável como a carta teria sido extraída do quarto pseudofechado, imediatamente esclarecemos quem foi que a tirou. Foi a pessoa que lá a põs. E quando vemos que essa pessoa foi quem suscitou a ideia do passeio e da ausência quando o Simas viesse; quando notamos que essa pessoa é de um temperamento histérico, e, portanto, predisposta às coisas imaginosas e disparatadas, o desaparecimento da carta fica não só resolvido, mas nitidamente explicado, no seu modo e na razão do seu modo.
»Chegamos, pois, a duas conclusões: sabemos como a carta foi tirada, e sabemos que quem a tirou foi a mulher do engenheiro.
O charuto de Quaresma apagara-se. Na suspensão do argumento, o charadista acendeu novo fósforo e reanimou a vida da nicotina. Mas, antes que falasse de novo, o Guedes, que tinha estado ainda num crepúsculo de apoplexia de pasmo e de imaginação, explodiu outra vez.
Ficção e Teatro. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986
- 122.«A Carta Mágica». 1ª publ. in A Novela Policial-Dedutiva em Fernando Pessoa . Fernando Luso Soares. Lisboa: Diabril, 1976