É, a meu ver, um erro de Salazar o filiar o espírito de partido...
É, a meu ver, um erro de Salazar o filiar o espírito de partido — Pelo menos entre nós e nos países latinos — na aprendizagem de arguir e defender que se faz ou fazia em certas escolas. Em Inglaterra pode, em certo modo, ser assim; e que as debating societies das universidades e outras escolas — que são extra-escolarmente o mesmo que Salazar indica — se reflictam nos debates parlamentares e criam a mentalidade partidária, influindo, pelo exemplo comiciário e parlamentar em indivíduos que não pertenceram a qualquer dessas societies.
A Inglaterra, porém, sendo o país onde essa espécie de preparação mais frequentemente existe, não é todavia o país onde mais se acentue o espírito partidário, no sentido em que Salazar o entende. Muito mais se acentua esse espírito, assim entendido, nos países latinos. E isso nos dá desde logo um indício que permite encontrar a verdadeira origem desse espírito.
O espírito partidário é uma consequência da intolerância religiosa do passado, e por isso mais se acentua naqueles países que sofreram, durante séculos, o influxo da mais intolerante de todas as formas de religião — o catolicismo. A Itália, a Espanha e Portugal são os países onde esse espírito de partido, como Salazar o entende, mais se acentua. São também os países onde mais se acentuou a acção da Igreja de Roma.
De resto, o efeito do sistema de arguir e defender pode ser inteiramente diferente daquele que lhe atribui Salazar. A um temperamento diverso daquele em que se forma o partidário o efeito desse sistema pode ser o de considerar aceitáveis todas as ideias e todas as teorias — conduzindo assim ao conceito oposto ao partidário, ao conceito de que a teoria vale o que vale o teorizador, de que tudo é defensável, de que uma tolerância vasta, ou um vasto cepticismo, são a atitude legítima do espírito humano.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
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