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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Bernardo Soares

Os crepúsculos nas cidades antigas, com tradições desconhecidas...

Os crepúsculos nas cidades antigas, com tradições desconhecidas escritas nas pedras negras dos edifícios pesados; as antemanhãs trémulas nas campinas alagadas, pantanosas, húmidas como o ar antes do sol; as vielas onde tudo é possível, as arcas pesadas nas salas vetustas; o poço ao fundo da quinta ao luar; a carta datada dos primeiros amores da nossa avó que não conhecemos; o mofo dos quartos onde se arrecada o passado; a espingarda que ninguém hoje sabe usar; a febre nas tardes quentes à janela; ninguém na estrada; o sono com sobressaltos; a moléstia que alastra pelas vinhas; sinos; a mágoa claustral de viver... Hora de bênçãos tuas mãos subtis... A carícia nunca vem, a pedra do anel sangra no quase-escuro... Festas de igreja sem crença na alma: a beleza material dos santos toscos e feios, paixões românticas na ideia de tê-las, a maresia à noite entrada nos cais da cidade humedecida pelo arrefecer...

Magras, tuas mãos alam-se sobre quem a vida sequestra. Longos corredores, e as frestas, janelas fechadas sempre abertas, o frio no chão como as campas, a saudade de amar como uma viagem por fazer às terras incompletas... Nomes de rainhas antigas... Vitrais onde pintaram condes fortes... A luz matutina vagamente espalhada, como um incenso frio pelo ar da igreja concentrado no escuro do chão impenetrável... As mãos secas uma contra a outra.

Os escrúpulos do monge que, no livro antiquíssimo encontra, nos algarismo absurdos, ensinamentos dos magos, e nas estampas decorativas os passos da Iniciação.

Praia ao sol a febre em mim... O mar luzindo a minha angústia na garganta... As velas ao longe e como andam na minha febre... Na febre as escadas para a praia... Calor na brisa fresca, transmarina, mare vorax, minax, mare tenebrosum a noite escura lá longe para os argonautas e a minha testa a arder as caravelas primitivas...

Tudo é dos outros salvo a mágoa de o não ter.

Dá a […] a mim... Hoje faltam no seio de casa os seus passos pequenos e o não se saber donde ela está metida onde é que estará a lavrar com pregas, com cores, com alfinetes. Hoje as suas costuras estão fechadas para sempre em gavetas de correr na cómoda supérflua e não há o calor de braços fechados à roda do pescoço da mãe.

s.d.

Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa. (Organização e fixação de inéditos de Teresa Sobral Cunha.) Coimbra: Presença, 1990.

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"Fase decadentista", segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.