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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

Azul, ou verde, ou roxo, quando o sol

Azul, ou verde, ou roxo, quando o sol

O doura falsamente de vermelho,

O mar é áspero [?], casual [?] ou mo(le),

É uma vez abismo e outra espelho.

Evoco porque sinto velho

O que em mim quereria mais que o mar

Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros

Com que fizeram a navegação,

Jazem longínquos, lúgubres parceiros

Do nosso esquecimento e ingratidão.

Só o mar, às vezes, quando são

Grandes as ondas e é deveras mar

Parece incertamente recordar.

Mas sonho... O mar é água, é agua nua,

Serva do obscuro ímpeto distante

Que, como a poesia, vem da lua

Que uma vez o abate outra o levanta.

Mas, por mais que descante

Sobre a ignorância natural do mar,

Pressinto-o, vazante, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma? Quem conhece

Que alma há nas coisas que parecem mortas.

Quanto em terra ou em nada nunca esquece.

Quem sabe se no espaço vácuo há portas?

Ó sonho que me exortas

A meditar assim a voz do mar,

Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres — todos nautas

Da descoberta infiel de cada dia ó

Acaso vos chamou de ignotas flautas

A vaga e impossível melodia.

Acaso o vosso ouvido ouvia

Qualquer coisa do mar sem ser o mar

Sereias só de ouvir e não de achar?

Quem atrás de intérminos oceanos

Vos chamou à distância como [?] quem

Sabe que há nos corações humanos

Não só uma ânsia natural de bem

Mas, mais vaga, mais subtil também,

Uma coisa que quer o som do mar

E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é, e se vós e o mar imenso

Sois qualquer coisa, vós por o sentir

E o mar por o ser, disto que penso;

Se no fundo ignorado do existir

Há mais alma que a que pode vir

À tona vã de nós, como à do mar,

Fazei‑me livre, enfim, de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta,

Fazei que eu tenha, como o capitão

Ou o contramestre, ouvidos para a flauta

Que chama ao longe o nosso coração,

Fazei-me ouvir, como a um perdão,

Numa reminiscência de ensinar,

O antigo português que fala o mar!

9-6-1935

Mensagem - Poemas esotéricos. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de José Augusto Seabra.) Porto: Fund. Eng. A. Almeida, 1993

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1ª publ. in Obra Poética. Fernando Pessoa. (Organização, introdução e notas de Maria Aliete Dores Galhoz.) Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1960.