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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Projecto «Olisipo»]

[Projecto «Olisipo»]

Mau grado o desenvolvimento, sobretudo recente, do comércio e da indústria portugueses, Portugal não existe ainda como colectividade comercial e industrial.Isto é, o país tem comércio, o país tem indústria; esse comércio, essa indústria, têm associações, e, recentemente, formaram uma espécie de núcleos de defesa — referentes estes, porém, exclusivamente a uma necessidade de ordem pública. Mas o que esse comércio e essa indústria não têm é organização como conjunto nacional. Por isso — mais ainda que pela conhecida incúria do Estado, através de todas as políticas — não existe defesa comercial de Portugal, não existe organização industrial do país como conjunto.

É preciso — quanto antes, porque mais do que nunca é agora sentida, no estado de pós-guerra, tanto pelo acréscimo dos problemas de desenvolvimento, como pelo acréscimo dos de concorrência, a necessidade dessa organização — organizar a organização em Portugal, criar a indústria da organização em Portugal.

Isto é simples, é evidente; o que, pelo menos de princípio, não parece tão simples, é descobrir, não já a fórmula, mas ao menos o sentido concreto desta necessidade. Como é que se organiza a organização? como é que se cria a indústria da organização? Que sentido prático e concreto têm estas frases?

A organização é, por sua natureza, um fenómeno intelectual, um trabalho da inteligência. A, referida, “indústria da organização” é, portanto, uma industria intelectual.

Ora as indústrias intelectuais são três: a produção artística e literária; o ensino; e os trabalhos de publicidade, informação (relacionação) e editoria.

A organização da organização, a indústria da organização, envolve portanto, simplesmente, a organização da produção artística e literária, a organização do ensino, e a organização das indústrias de publicidade, informação e editoria.

Ponhamos, desde já, de parte a produção artística e literária. Esta nem se relaciona com o ponto de partida deste relatório, que se reporta à organização integral do comércio e indústria como conjunto de actividade nacional; nem é susceptível de organização estudada, pois que os fenómenos de produção artística e literária, sendo de natureza individual e dependendo, para a sua intensidade, do número de homens de. génio e de talento artístico e literário que haja num país, e o número destes homens dependendo de leis naturais cuja natureza e operação desconhecemos, mas é apenas susceptível de auxílio e estímulo (para que os homens de talento e de génio possam produzir quanto tenham competência e jeito para produzir) — e este auxílio e este estímulo resumem-se numa sábia organização do ensino, e numa estudada organização das indústrias de publicidade, informação e editoria.

Ficamos, portanto, para a solução do problema inicial, reduzidos à consideração da organização do ensino, e da organização das indústrias da publicidade, da informação e da editoria.

As editorias portuguesas têm enfermado até agora, não talvez de um triplo erro, mas por certo de uma tripla deficiência. Esta tripla deficiência reside no seguinte:

(1) Não procuram, em grande número de casos e de matérias, atrair o público imediatamente culto, quer de Portugal, quer do Brasil. Não pensam em tomar à editoria estrangeira (isto é, francesa e espanhola) certas posições que, sem grande dificuldade, lhe poderiam tomar. Um exemplo: Aquele público, se quiser ler as obras notáveis das línguas estrangeiras que não conhece (as que conhece limitam-se, ordinariamente, ao espanhol e ao francês), tem que procurá-las em traduções para qualquer destas duas línguas, porque não encontra traduções em português.

Por esta deficiência flagrante se calcularão as outras, do mesmo teor.

(2) Não reparam em que o público português e brasileiro, em quais todas as camadas excepto as estritamente literárias, são tradicionalmente pouco leitoras, estando por isso pouco aptas a ler obras extensas, para cuja leitura não têm o interesse, nem a atenção, educados. Não obstante ser isto de fácil conhecimento, há matérias em que parece que os editores portugueses se empenham em escolher, entre as aproveitáveis, as mais extensas e as de mais pesada leitura. Isto é flagrante, sobretudo, nas traduções que se fazem de obras de vulgarização científica e de especialidade sumariamente tratadas.

(3) Não olham a que em Portugal e Brasil (como, aliás, em quase todos os países) não há uma coincidência perfeita entre a parte mais culta e mais rica da sociedade; que é portanto imprudente fazer edições relativamente caras em matérias onde, sabendo o editor orientar-se, edições baratas se podem fazer, com maior proveito em todos os sentidos.

Estas três deficiências nascem de duas causas, que, de resto, estão ligadas entre si; são elas a falta de cultura dos editores e a sua falta de organização como industriais. A falta de cultura dos editores portugueses faz com que não conheçam nem as literaturas estrangeiras e os livros de interesse geral no estrangeiro (não sabendo por isso que livros mais proveitosamente traduzir), nem como orientar-se para obter em Portugal tradutores competentes para essas obras; para não falar da incapacidade de orientação com respeito a publicações nacionais, onde o acaso é que decide tudo. Esta falta de cultura, junto à falta de estudo do público, é que produz aquela deficiência de organização industrial das editoras, a que acima se fez alusão. Pode dizer-se que, desde que morreu David Corazzi, não tem havido industriais da editoria, verdadeiramente tais, em Portugal.

O plano editorial de “Olisipo” consiste simplesmente, como pode calcular-se, no preenchimento, conscientemente estudado e feito, das três deficiências que se indicaram. Para esse fim tem a empresa, adentro de si, os precisos elementos, quer para conhecimento das obras que mais proveitosamente pode editar, quer para traduzir essas obras, onde sejam estrangeiras.

Um exemplo valerá por muitos, porque se referirá à edição talvez mais difícil de fazer competentemente para uma editoria fora dos países de língua inglesa — e fora destes porque, sendo inglesa a obra de que se trata, a dificuldade editorial está na tradução.

O nome maior de toda a literatura europeia é o de Shakespeare. Uma tradução de obra de Shakespeare é um empreendimento seguro, porque o interesse por Shakespeare é universal. Mas uma tradução verdadeiramente boa de Shakespeare é uma dificuldade enorme, tão grande que não há uma tradução que sequer se aproxime de boa em qualquer das línguas latinas, e por certo nem a França nem a Itália são países de cultura inferior. É que, para traduzir Shakespeare de modo a dar uma ideia nítida da maneira e do estilo do original, são precisas qualidades especiais; não bastam um espírito culto e um conhecimento, embora profundo, da língua inglesa. A maneira e o estilo de Shakespeare (são) tão individuais que só pode traduzir Shakespeare bem quem, além de ter aquelas qualidades, esteja, ainda, inteiramente penetrado do espírito da obra shakespeariana. — “Olisipo” é a primeira empresa editora dos países chamados latinos que tem elementos para realizar essa tradução. O tradutor português que a fará, tendo publicado um livro de versos em inglês, foi, a propósito desse livro, mencionado em um artigo elogioso do Times como «absolutamente penetrado do espírito shakespeariano», e o crítico manifestava o seu pasmo pelo facto, sobretudo tratando-se de um estrangeiro. Igual circunstância não consta, nem seria de esperar que constasse, de nenhum dos tradutores de Shakespeare em nenhum dos países de língua latina.

Pela demonstração, que acaba de fazer-se, de haver competência para este caso, que é o mais difícil de todos os casos editoriais dos países não de língua inglesa, se pode avaliar que haja nesta empresa competência para projectar e orientar edições menores e menos difíceis.

Seria absurdo e imprudente expor detalhadamente os planos editoriais de “Olisipo”, além do plano da tradução de Shakespeare; poderiam, sendo conhecidos, ser aproveitados, embora mal. Não há esse risco com a tradução de Shakespeare, ideia que ninguém tem elementos para aproveitar.

À parte as edições, que nascem do plano de suprir as três deficiências mencionadas, “Olisipo” faria as edições do tipo usual, onde houvesse vantagem em fazê-las.

Uma edição de mil exemplares, vendida por inteiro, e descontadas todas as despesas, incluindo os descontos a livreiros, dá à empresa editora um lucro de entre 40 e 60 por cento do capital empregado na edição. Suponho que a parte, que o capital tem nos lucros da empresa, é de cinquenta por cento, quer isto dizer que sé o capital tem na edição um lucro de 20 a 30 por cento.

Isto, porém, refere-se apenas a uma edição, e também se calcula para uma edição inteiramente vendida no prazo de um ano. Ora durante um ano fazem-se várias edições, e algumas delas são pagas com capital proveniente da venda das anteriores. Por isso o lucro do capital vem a ser realmente mais alto que no caso de uma edição só. Como, porém, nem todas as edições talvez se vendessem por inteiro no prazo de um ano, podemos dar esta quebra possível como equivalente (embora na verdade o não seja) ao lucro maior acima indicado. Poder-se-á pois computar, sem receio de erro, que uma empresa editorial assim orientada dará 25 a 30 por cento ao ano de rendimento ao capital empregado nela, supondo uma divisão de lucros em partes iguais entre o capital e a indústria.

O plano editorial acima esboçado é feito para uma empresa interessante, porém modesta. Um alargamento do âmbito da empresa permitiria ampliar, por sua vez, o lucro. O âmbito da empresa editora pode alargar-se de duas maneiras: agregando, como é vulgar, o comércio de livraria à indústria editorial; alargando, quantitativa, como qualitativamente, a própria actividade da editoria.

Na situação cambial presente não é recomendável a agregação do comércio de livraria à actividade editorial. Grande parte daquele comércio basear-se-ia em livros estrangeiros, e uma melhoria cambial, ainda que pequena, facilmente converteria em perda o resultado da actividade naquele ramo. Não quer isto dizer que se não possa fazer um negócio pequeno, e de índole ocasional, em livros; quer servindo a empresa de agente para encomendas particulares de livros estrangeiros ou nacionais, o que envolve liquidação ao mesmo câmbio que ela liquida, e falta de stocks, e portanto nenhum risco de perda; quer negociando ocasionalmente, e para o estrangeiro, em livros antigos. Como o capital necessário para esta actividade ocasional é pequeno, é escusado citar este ramo como um alargamento da actividade da empresa, pelo menos para o efeito de ser necessário, por causa dele, mais capital.

No capítulo do alargamento, quantitativo porque qualitativo, da actividade propriamente editorial da empresa é que há azo, com efeito, para a aplicação de um capital maior.

São vários os empreendimentos editoriais de um certo vulto, pelo menos no seu conjunto, a que pode abalançar-se, caso disponha de capital para isso, uma empresa orientada, no sentido cultural como no industrial, pelas normas indicadas na primeira secção deste relatório sumário, Esses empreendimentos podem resumir-se classificando-os em três categorias.

(1) Edições de obras, que a isso se prestem, em fascículos ou tomos, não, é claro, no género dos romances populares, ou obras semelhantes, que se vendem por aquele processo, mas antes do género da “Biblioteca Internacional de Obras Célebres”, que teve uma venda magnífica no Brasil, ou do género dicionário, enciclopédia ou antologia.

(2) Edições em línguas estrangeiras, e especialmente em francês e inglês, quer traduções de obras portuguesas, quer outras traduções, como as publicaria qualquer casa editora de França ou Inglaterra, quer reedições, quer obras de género antológico. Há muito a fazer neste campo, e a situação cambial presente facilita este ramo da indústria editorial. Mesmo uma grande melhoria de câmbio não a prejudicaria muito, dado que é ramo que pode exercer-se lucrativamente mesmo com o câmbio ao par. A orientação a seguir neste ramo não é bem a do editor alemão Tauchnitz com referência às edições inglesas que faz para o Continente; é mais ampla e mais completa, nem envolve o pagamento de direitos de autor em grande número das edições. Se este género editorial não tem sido tentado em Portugal, inútil é explicar que tem sido porque é uma ideia que não pode ocorrer, ou só pode ocorrer como impraticável, à incultura dos editores portugueses.

(3) Edições em línguas estrangeiras, e especialmente em inglês (pelas extensas populações que abrangem), baseadas na propaganda de Portugal; servirão de exemplo um anuário de Portugal (concentrado) para o estrangeiro, e uma revista de propaganda com o mesmo fim. Estas duas publicações, citadas aqui como exemplos, não teriam a base de segurança, que oferecem as que se indicam no parágrafo anterior, se não fosse o elemento anúncios, que permitem que apareça, e que alarga a receita extraordinariamente.

s.d.

Páginas de Pensamento Político. Vol II. Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Europa-América, 1986.

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1ª publ. in Fernando Pessoa - O Comércio e a Publicidade. António Mega Ferreira. Lisboa: Cinevoz/Lusomedia, 1968