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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

[Carta a Mário de Sá-Carneiro - 6 Dez. 1915]

Lisboa, 6 de Dezembro de 1915

                Meu querido Sá-Carneiro:

Como lhe escrevo esta carta, antes de tudo, por ter a necessidade psíquica absoluta de lha escrever, V. desculpará que eu deixe para o fim a resposta à sua carta e postal hoje recebidos, e entre imediatamente naquilo que ficará o assunto desta carta.

Estou outra vez presa de todas as crises imagináveis, mas agora o assalto é total. Numa coincidência trágica, desabaram sobre mim crises de várias ordens. Estou psiquicamente cercado.

Renasceu a minha crise intelectual, aquela de que lhe falei mas agora renasceu mais complicada, porque, à parte ter renascido nas condições antigas, novos factores vieram emaranhá-la de todo. Estou por isso num desvairamento e numa angústia intelectuais que V. mal imagina. Não estou senhor da lucidez suficiente para lhe contar as cousas. Mas, como tenho necessidade de lhas contar, irei explicando conforme posso.

A primeira parte da crise intelectual, já V. sabe o que é; a que apareceu agora deriva da circunstância de eu ter tomado conhecimento com as doutrinas teosóficas. O modo como as conheci foi, como V. sabe, banalíssimo. Tive de traduzir livros teosóficos. Eu nada, absolutamente nada, conhecia do assunto. Agora, como é natural, conheço a essência do sistema. Abalou-me a um ponto que eu julgaria hoje impossível, tratando-se de qualquer sistema religioso. O carácter extraordinariamente vasto desta religião-filosofia; a noção de forca, de domínio, de conhecimento superior e extra-humano que ressumam as obras teosóficas, perturbaram-me muito. Cousa idêntica me acontecera há muito tempo com a leitura de um livro inglês sobre Os Ritos e os Mistérios dos Rosa-Cruz. A possibilidade de que ali, na Teosofia, esteja a verdade real me «hante». Não me julgue V. a caminho da loucura creio que não estou. Isto é uma crise grave de um espírito felizmente capaz de ter crises desta. Ora, se V. meditar que a Teosofia é um sistema ultracristão—no sentido de conter os princípios cristãos elevados a um ponto onde se fundem não sei em que além-Deus — e pensar no que há de fundamentalmente incompatível com o meu paganismo essencial, V. terá o primeiro elemento grave que se acrescentou à minha crise. Se, depois, reparar em que a Teosofia, porque admite todas as religiões, tem um carácter inteiramente parecido com o do paganismo, que admite no seu Panteão todos os deuses, V. terá o segundo elemento da minha grave crise de alma. A Teosofia apavora-me pelo seu mistério e pela sua grandeza ocultista, repugna-me pelo seu humanitarismo e apostolismo (V. compreende?) essenciais, atrai-me por se parecer tanto com um «paganismo transcendental» (é este o nome que eu dou ao modo de pensar a que havia chegado), repugna-me por se parecer tanto com o cristianismo, que não admito. E o horror e a atracção do abismo realizados no além-alma. Um pavor metafísico, meu querido Sá-Carneiro!

V. seguiu bem todo este labirinto intelectual? Pois bem. Repare que há outros dois elementos que ainda mais vêm complicar o assunto. Quero ver se consigo explicar-lhos lucidamente...

(...)

6-12-1915

Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas . Fernando Pessoa. (Introduções, organização e notas de António Quadros.) Mem Martins: Publ. Europa-América, 1986.

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1ª publ. in Vida e Obra de Fernando Pessoa - História de uma Geração . João Gaspar Simões. Lisboa: Bertrand, 1951.