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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Álvaro de Campos

Mas não e só o cadáver

Mas não e só o cadáver

Essa pessoa horrível que não é ninguém,

Essa novidade abísmica do corpo usual,

Esse desconhecido que aparece por ausência na pessoa que conhecemos,

Esse abismo cavado entre vermos e entendermos —

Não é só o cadáver que dói na alma com medo,

Que põe um silêncio no fundo do coração,

As coisas usuais externas de quem morreu

Também perturbam a alma, mas com mais ternura no medo.

Sejam de um inimigo,

Quem pode ver sem saudade a mesa a que ele sentava,

A caneta com que escrevia?

Quem pode ver sem uma angústia própria

A espingarda do caçador desaparecido sem ela para alívio de todos os montes?

O casaco do mendigo morto, onde ele metia as mãos (já ausentes para sempre) na algibeira,

Os brinquedos, horrivelmente arrumados já, da criança morta,

Tudo isso me pesa de repente no entendimento estrangeiro

E uma saudade do tamanho do espaço apavora-me a alma...

s.d.

Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993.

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