FAUSTO: - Não descreio de Deus, passei p'ra além...
— ...Deus
FAUSTO:
Não descreio de Deus, passei p'ra além...
Um dia, meditando
Uma ideia espontânea e horrorosa
Como um vulto supremo sem ter vulto,
Surgiu no fundo do meu pensamento...
Como a noite corporizada, e o medo
Vestindo-a, e (...)
Apareceu-me Deus em esqueleto...
Tudo despira do seu corpo ideal
Não de infinito só, de inatingível,
Mas mesmo de mais do que inatingível.
Até ao fundo do seu ser abstracto
O meu ser despi, e eu vi o (...)
Esqueleto (...) do Mistério...
O informe tomou forma dentro em mim...
Ah inda hoje, se relembro, sinto
Como um medo no longe, um pavor negro
Não em mim, mas em todo o Universo,
Um arrepio pelas estrelas fora
E um grande horror arrepanhando os céus
Como à humana pele que tem medo...
(treme)
— Isso é um pensamento...
FAUSTO:
Se eu pensei
Isto, se isto me foi possível
É crível que a verdade seja
Mais profunda que o meu pensamento.
Como pensei eu cousas mais profundas
Do que a verdade em si?
Apareceu-me o Universo íntimo
Do misterioso avesso... E eu vi, (...)
O outro lado das cousas, não das cousas
Aparentes apenas, mas o outro
Lado até do Essencial, do Inaparente,
Do além-divino e do Divino em Deus...
Tinha a forma, sensível aos meus olhos
Do espírito, dum imenso céu estrelado.
Mas eu, com nítida visão de dentro,
Via que era infinito, como se visse
Em corpo e forma (...) [...]
E sob o meu olhar apavorado
Vi o nosso sistema do universo
Mais perto... A ideia abstracta e nua,
A vida extrema e última de nós.
O Ser, o ser abstracto e (...)
Era um sol — sol de (...) e seguia
Como da circunferência para o centro
(Não como nós que vemos sempre — e em sonho
É o mesmo (do centro sempre p'ra o espaço,
Real ou suposto nessa circunferência) —
Eu vi, e cada sol e seu sistema
Ia em outros sóis e outros sistemas
Na órbita de sóis mais interiores
(O centro de cuja circunferência
Eu via em infinito para dentro,
Não para fora como infinito mesmo)
E o nosso mundo como um deus nele
Era um mero satélite
De um sol do só primeiro sistema
Raiando a ideia sobre o seu mundo.
Infinito interior ao interior!
Pavorosa agonia do Profundo!
Vacuidade e realidade negra
De tudo!
Fausto - Tragédia Subjectiva. Fernando Pessoa. (Texto estabelecido por Teresa Sobral Cunha. Prefácio de Eduardo Lourenço.) Lisboa: Presença, 1988.
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