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OBRA ÉDITA · FACSIMILE · INFO
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Fernando Pessoa

ELEGIA NA SOMBRA

ELEGIA NA SOMBRA

Lenta, a raça esmorece, e a alegria

É como uma memória de outrem. Passa

Um vento frio na nossa nostalgia

E a nostalgia touca a desgraça.

Pesa em nós o passado e o futuro.

Dorme em nós o presente. E a sonhar

A alma encontra sempre o mesmo muro,

E encontra o mesmo muro ao despertar.

Quem nos roubou a alma? Que bruxedo

De que magia incógnita e suprema

Nos enche as almas de dolência e medo

Nesta hora inútil, apagada e extrema?

Os heróis resplandecem a distância

Num passado impossível de se ver

Com os olhos da fé ou os da ânsia;

Lembramos névoas, sonhos a esquecer.

Que crime outrora feito, que pecado

Nos impôs esta estéril provação

Que é indistintamente nosso fado

Como o sentimos bem no coração?

Que vitória maligna conseguimos —

Em que guerras, com que armas, com que armada? —

Que assim o seu castigo irreal sentimos

Colado aos ossos desta carne errada?

Terra tão linda com heróis tão grandes,

Bom Sol universal localizado

Pelo melhor calor que aqui expandes,

Calor suave e azul só a nós dado.

Tanta beleza dada e glória ida!

Tanta esperança que, depois da glória,

Só conhecem que é fácil a descida

Das encostas anónimas da história!

Tanto, tanto! Que é feito de quem foi?

Ninguém volta? No mundo subterrâneo

Onde a sombria luz por nula dói,

Pesando sobre onde já esteve o crânio,

Não restitui Plutão [a ver?] o céu

Um herói ou o ânimo que o faz,

Como Eurídice dada à dor de Orfeu;

Ou restituiu e olhámos para trás?

Nada. Nem fé nem lei, nem mar nem porto.

Só a prolixa estagnação das mágoas,

Como nas tardes baças, no mar morto,

A dolorosa solidão das águas.

Povo sem nexo, raça sem suporte,

Que, agitada, indecisa, nem repare

Em que é raça e que aguarda a própria morte

Como a um comboio expresso que aqui pare.

Torvelinho de doidos, descrença

Da própria consciência de se a ter,

Nada há em nós que, firme e crente, vença

Nossa impossibilidade de querer.

Plagiários da sombra e do abandono,

Registramos, quietos e vazios,

Os sonhos que há antes que venha o sono

E o sono inútil que nos deixa frios.

Oh, que há-de ser de nós? Raça que foi

Como que um novo sol ocidental

Que houve por tipo o aventureiro e o herói

E outrora teve nome Portugal...

(Fala mais baixo! Deixa a tarde ser

Ao menos uma extrema quietação

Que por ser fim faça menos doer

Nosso descompassado coração.

Fala mais baixo! Somos sem remédio,

Salvo se do ermo abismo onde Deus dorme

Nos venha despertar do nosso tédio

Qualquer obscuro sentimento informe.

Silêncio quase? Nada dizes! Calas

A esperança vazia em que te acho,

Pátria. Que doença de teu ser se exala?

Tu nem sabes dormir. Fala mais baixo!)

Ó incerta manhã de nevoeiro

Em que o rei morto vivo tornará

Ao povo ignóbil e o fará inteiro —

És qualquer coisa que Deus quer ou dá?

Quando é a tua Hora e o teu Exemplo?

Quando é que vens, do fundo do que é dado,

Cumprir teu rito, reabrir teu Templo

Vendando os olhos lúcidos do Fado?

Quando é que soa, no deserto de alma

Que Portugal é hoje, sem sentir,

Tua voz, como um balouço de palma

Ao pé do oásis de que possa vir?

Quando é que esta tristeza desconforme

Verá, desfeita a tua cerração,

Surgir um vulto, no nevoeiro informe,

Que nos faça sentir o coração?

Quando? Estagnamos. A melancolia

Das horas sucessivas [?] que a alma tem

Enche de tédio a noite e chega o dia

E o tédio aumenta porque o dia vem.

Pátria, quem te feriu e envenenou?

Quem, com suave e maligno fingimento

Teu coração suposto sossegou

Com abundante e inútil alimento?

Quem faz que durmas mais do que dormias?

Que faz que jazas mais que até aqui?

Aperto as tuas mãos: como estão frias!

Mão do meu ser que tu amas, que é de ti?

Vives, sim, vives porque não morreste...

Mas a vida que vives é um sono

Em que indistintamente o teu ser veste

Todos os sambenitos do abandono.

Dorme, ao menos de vez. O Desejado

Talvez não seja mais que um sonho louco

De quem, por muito ter, Pátria, amado,

Acha que todo o amor por ti é pouco.

Dorme, que eu durmo, só de te saber

Presa da inquietação que não tem nome

E nem revolta ou ânsia sabes ter

Nem da esperança sentes sede ou fome.

Dorme, e a teus pés teus filhos, nós que o somos,

Colheremos, inúteis e cansados

O agasalho do amor que ainda pomos

Em ter teus pés gloriosos por amados.

Dorme, mãe Pátria, nula e postergada,

E, se um sonho de esperança te surgir,

Não creias nele, porque tudo é nada,

E nunca vem aquilo que há-de vir.

Dorme, que a tarde é finda e a noite vem.

Dorme que as pálpebras do mundo incerto

Baixam solenes, com a dor que têm,

Sobre o mortiço olhar inda desperto.

Dorme, que tudo cessa, e tu com tudo,

Quererias viver eternamente,

Ficção eterna ante este espaço mudo

Que é um vácuo azul? Dorme, que nada sente

Nem paira mais no ar, que fora almo

Se não fora a nossa alma erma e vazia,

Que o nosso fado, vento frio e calmo

E a tarde de nós mesmos, baça e fria

Como longínquo sopro altivo e humano

Essa tarde monótona e serena

Em que, ao morrer o imperador romano

Disse: Fui tudo, nada vale a pena.

2-6-1935

Novas Poesias Inéditas. Fernando Pessoa. (Direcção, recolha e notas de Maria do Rosário Marques Sabino e Adelaide Maria Monteiro Sereno.) Lisboa: Ática, 1973 (4ª ed. 1993).

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