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Álvaro de Campos

ÁLVARO DE CAMPOS, ENGENHEIRO NAVAL E POETA FUTURISTA

ÁLVARO DE CAMPOS, ENGENHEIRO NAVAL E POETA FUTURISTA

concede ao [jornal «...»] uma entrevista sensacional:  A situação da Inglaterra — A situação da Europa — A situação de Portugal

Pontos de vista originalíssimos

A estada ocasional em Lisboa, vindo de Newcastle-upon-Tyne, de Álvaro de Campos, engenheiro naval da casa Forsyth e um dos mais célebres colaboradores do celebrado Orpheu, sugeriu-nos a ideia de inquirir o que pensaria do estado actual de coisas em Portugal, sobretudo relacionando-o com o da Europa (e isso era, para nós, o ponto mais interessante), um dos espíritos mais originais e brilhantes do que talvez já se não possa continuar chamando «a nova geração».

Encontrámos Álvaro de Campos no Terreiro do Paço, por uma coincidência feliz, quando ele ia, ainda com tempo, para tomar o vapor para o rápido do Algarve. E a nossa primeira pergunta, passadas as saudações iniciais, foi esta:

— A situação actual em Inglaterra?

— Muito má industrialmente hoje, e portanto muito má politicamente amanhã.

A crise industrial deriva de causas algumas antigas, outras modernas, de causas algumas economicamente certas, outras economicamente fictícias. O mal é radical. Os governos têm sido de uma notável incapacidade na solução dos principais problemas com que têm sido confrontados — o problema industrial propriamente dito, o problema do desemprego, o próprio problema do alojamento. A Grã-Bretanha continua entretendo-se demasiado com as velhas ficções políticas, relíquias de uma época extinta. Ainda há muita gente em Inglaterra que tem no íntimo da alma a convicção de que uma eleição geral é uma coisa no género e da categoria de uma lei da natureza, e de que a «vontade do povo» é frase que comporta qualquer espécie de sentido. O que há de mais estranho nos indivíduos políticos é o pouco que conseguem aprender com a experiência flagrante. Metem-se-lhes na cabeça certas ideias, e atravessam a vida com essas ideias, embora a experiência quotidianamente as desminta. Desde que o desmentido não seja violento — e assim é em todas as sociedades em que, como a inglesa, se não está em estado revolucionário —, o apego às velhas fórmulas e às ficções mortas persiste, o sonho idiota dos bons tempos, em que estas ideias eram tão falsas como são hoje e também ninguém dava por isso.

Os políticos destes países pacíficos e ordeiros dão-me a impressão, quando se aproxima deles um período de agitação e de revolução, de homens que quisessem andar sobre água pela razão de a água apresentar, como a terra, uma superfície lisa. Empregam a experiência de um passado que foi uma coisa para lhes servir em um futuro que é outra coisa. Se lêem história, lêem-na como se fosse só livros, e não coisas que acontecessem. Estou certo que um inglês tem a ideia obscura de que guerra civil e revolução são, em Inglaterra, coisas que se deram no século XVII, como se fossem os números das datas, e por isso se não podem tornar a dar.

Os políticos ingleses, que são inteligentes para os problemas secundários e de uma estupidez crassa para os problemas fundamentais, andam a dizer, e com eles grande parte dos jornais, que a «maioria» do operariado, do operariado «são», como eles dizem (a frase, é claro, não quer dizer nada), não está com os comunistas. É de impacientar um cristal este modo [de] pensar. Que diabo importa que a maioria do operariado «esteja» ou «não esteja» com os extremistas, quando os extremistas levam essa maioria passiva para onde querem? Que diabo importa que a maioria do operariado não concorde com o extremismo, se a maioria do operariado não está organizada, e o comunismo inglês está? Que importa a opinião dessa «maioria», se ela pensa politicamente, e o comunismo revolucionariamente? Em tempo de paz, e de eleições gerais (e os políticos ingleses julgam que as eleições gerais são a chave do universo), está bem que um milhão de eleitores valha mais que dez mil eleitores. Mas em tempo de guerra um milhão de gente organizada para a paz não vale um exército de dez mil homens expressamente organizado para a guerra. Os políticos ingleses julgam que as revoluções não se podem fazer quando a maioria do país não quer; quando as revoluções, para se fazerem, exigem apenas uma minoria audaz organizada para as fazer, e capaz de as fazer. A massa do país nunca importa. Julga alguém que o «povo» faz revoluções? Julga alguém que o regime russo actual é maioritário? Porque há tanta gente estúpida no mundo, o sr. sabe?

A maioria é essencialmente espectadora. As próprias eleições, dada a complexidade e o custo do maquinismo eleitoral, nunca podem ser vencidas senão por partidos eleitoralmente organizados. O eleitor não escolhe o que quer; escolhe entre isto e aquilo que lhe dão, o que é diferente. Tudo é oligárquico na vida das sociedades. A democracia é o mais estúpido de todos os mitos, porque nem sequer tem carácter místico.

— [O que pensa v. da questão social?]

— Não há questão social — creio que é «questão social» que as bestas dizem — em parte nenhuma. A Europa é hoje o teatro de um grande conflito, de um conflito ligeiramente triangular. Estão em guerra, no mundo, duas grandes forças — a plutocracia industrial e a plutocracia financeira. A plutocracia industrial com o seu tipo de mentalidade organizadora, a plutocracia financeira com o seu tipo de mentalidade especulativa; a industrial com a sua índole mais ou menos nacionalista, porque a indústria tem raízes, e liga portanto com as outras forças que as têm, a financeira com a sua índole mais ou menos internacional, porque não tem raízes, e não liga portanto senão consigo mesma, ou, então só com aquela raça praticamente privilegiada que, através da finança internacional, se pode dizer que hoje, sem ter pátria, governa e dirige as pátrias todas.

Mas as forças proletárias, o bolchevismo, o radicalismo?

— Isso são mitos. Não há correntes proletárias, não há bolchevismo (nem na Rússia), não há radicalismo em parte nenhuma. Tudo isso é o avesso da plutocracia financeira, e é provadamente dirigido e financiado por ela. Não há movimento nenhum de ordem radical que não seja movido, em última causa, pelo Frankfurter Bund, ou por qualquer outro organismo derivado da Internacional Financeira, que é a autêntica internacional. Os operários são todos uns idiotas, e os seus chefes, ou idiotas também, ou loucos; todos são elementos essencialmente sugestionáveis, instrumentos inconscientes de forças de cuja existência muitos deles nem sequer suspeitam. No congresso recente das Associações de Classe inglesas (Trade Unions), foram votadas várias moções de carácter extremista; mas é singular que todas elas visam coisas que deixam livre o «capitalismo» internacional. A execução dos princípios consignados nessas moções importaria a ruína da indústria inglesa, e a do império britânico; deixaria porém de pé todas as forças e meios de acção do autêntico capitalismo, da finança internacional. :É interessante este extremismo, não é? Foi precipitada, disse-se, a redacção dessas moções; mas é curioso que a precipitação nunca atingiu o fenómeno máximo do capitalismo, sendo elas todas dirigidas contra o capitalismo...

— [E a situação em Portugal?]

— Portugal é uma plutocracia financeira de espécie asinina. É, como todos os países modernos, excepto, talvez, a Itália, uma oligarquia de simuladores. Mas é uma oligarquia de simuladores provincianos, pouco industriados na própria histeria postiça. Ninguém já engana ninguém — o que é tristíssimo — na terra natal do Conto do Vigário. Não temos senão os vigaristas de praça como prova de qualquer sobrevivência das qualidades de intrujice da nação. Ora um país sem grandes intrujões é um país perdido, porque a civilização, em qualquer dos seus níveis, é essencialmente a organização da artificialidade, isto é, da intrujice. «Quem não intruja não come»; é esta a forma sociológica dum provérbio que o povo não sabe dizer, porque o povo nunca sabe dizer nada. De resto, a sociologia também não existe.

— Assistiu a alguma sessão do julgamento do 18 de Abril?

— «Para quê? As farsas não me divertem. O 18 de Abril — em que, aliás, não surgiu um único elemento intelectualmente superior, nem um chefe — porque ser chefe não é ser vencido — foi simplesmente o conflito entre duas correntes que, com igual intensidade, presentemente agitam Portugal. Há em Portugal hoje duas correntes perfeitamente definidas: a que acha insuportável este estado de coisas; e a que descrê de todos os processos revolucionários para o resolver. Essas duas correntes chocaram-se no 18 de Abril, e venceu a segunda. Eis tudo. O resto é uma farsa de questões pessoais que não interessa senão idiotas. Os homens não importam, de um lado ou de outro; o que importa é as correntes essenciais, que esses homens, de um lado e de outro, de uma maneira e de outra, temporariamente incarnaram. Que importa que fulano tivesse dado a sua palavra que fazia isto ou aquilo, ou alguém supusesse por ter ouvido dizer a sicrano, que parece que o soubera de beltrano, que essa palavra estava dada? O que importa é o conflito do país consigo mesmo, a guerra civil na alma nacional. O país hoje quer duas coisas ao mesmo tempo: quer mudança, e não quer revoluções. É a quadratura do círculo a resolver in anima vili.

— O que há a fazer, então?

— Para nos salvarmos? Aderir antecipadamente ao futuro império de Israel. Os judeus têm ganha a primeira batalha; ganharam-na em Moscóvia, como ali a perdeu Napoleão. No devido tempo ganharão também o seu Waterloo. A civilização europeia actual está moribunda. Não é o capitalismo, nem a burguesia, nem nenhuma outra dessas fórmulas vazias que está morrendo; é a civilização actual — a civilização greco-romana e cristã. Já nada a pode salvar. Poderíamos pensar, um tempo, em nos salvarmos com a plutocracia industrial, mas como, se a plutocracia industrial está caindo? se está caindo em proveito da plutocracia financeira?

— Mas como é que aderiremos antecipadamente ao futuro império de Israel, supondo que ele venha?

— Desintegrando propositadamente todas as forças contrárias, esforçando-nos por escangalhar a indústria nacional, por aluir o pouco que resta de influência católica (excepto ritualmente não é de grande coisa), por substituir uma cultura técnica à cultura clássica, por desintegrar a família no seu sentimento tradicional. . .

— Mas isso é monstruoso! E é v., um engenheiro, que fala de desintegrar a indústria?

— É monstruoso, é; a vida é frequentemente monstruosa. E quanto a eu, engenheiro, falar em desintegrar a indústria, não me refiro à indústria senão como indústria nacional. Não digo «desintegrar a técnica». Devemos criar a humanidade dos técnicos... Alguma coisa disto — antes de toda a orientação neste sentido que tem surgido adentro do bolchevismo, dirigida de cima, de fora, e por mão de mestre —, já eu tinha proclamado a essência no meu Ultimatum de 1917, publicado no número único do Portugal Futurista nesse mesmo ano.

— Mas isso é bolchevismo!

— Não é, e é. Não é bolchevismo porque nada vai aqui de interesse pelas plebes, pelos operários, que devem ser reduzidos a uma condição de escravatura ainda mais intensa e rígida que aquilo a que eles chamam a «escravatura» capitalista. A massa humana deve ser compelida a amalgamar-se numa classe composta do actual proletariado e dos restos das classes médias.

— Mas o que tem o Império de Israel com o império dos técnicos?

— Essencialmente, nada. Mas o único império que pode haver é o de Israel, e a única maneira de realizar hoje um império é utilizando a técnica, que é o característico distintivo da nossa época. Bem vê, uma coisa é império, propriamente dito, outra coisa o processo pelo qual se mantém e conserva.

Todas as civilizações, parece, nascem de um domínio de uma nação sobre outra, de uma classe sobre outra. Um velho sociólogo, dos mais notáveis, embora esquecido, Stuart Glennie, expôs há uns bons trinta anos esta teoria. Deixe ver... Talvez me recorde da sua definição de civilização, colhida através do exame mais exaustivo que se pode fazer dos mitos e dos usos primitivos.

— Pareceu-nos sempre que essa história do «judaísmo» e do perigo judeu era uma madureza de fanáticos. . .

— Nalgumas das suas manifestações, é. Mas na essência não é madureza nenhuma. Madureza seria, sem dúvida, a de alguém que no tempo de Tibério ou de Nero se lembrasse de dizer que o Império Romano corria risco de ser absorvido, conquistado, por uma obscura seita judaica chamada o cristianismo. (...)

1919

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.

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