EXPLICAÇÃO DE UM LIVRO
EXPLICAÇÃO DE UM LIVRO
Publiquei em Outubro passado, pus à venda, propositadamente, em 1 de Dezembro, um livro de poemas, formando realmente um só poema, intitulado Mensagem. Foi esse livro premiado, em condições especiais e para mim muito honrosas. pelo Secretariado de Propaganda Nacional.
A muitos que leram com apreço a Mensagem, assim como a muitos que o leram ou com pouco apreço ou com nenhum, certas coisas causaram perplexidade e confusão: a estrutura do livro, a disposicão nele das matérias, e mormente a mistura, que ali se encontra, de um misticismo nacionalista, ordinariamente colado, onde entre nós apareça, ao espírito e às doutrinas da Igreja de Roma, com uma religiosidade, deste ponto de vista, nitidamente herética.
Um fenómeno independente da Mensagem, e posterior à sua publicação, aumentou a perplexidade de uns e outros leitores do livro. Foi esse fenómeno o meu artigo sobre «Associações Secretas», inserto no «Diário de Lisboa», de 4 de Fevereiro [1935]. Esse artigo é um ataque a um projecto de lei sobre o assunto do título, e é, correlativamente, uma defesa integral da Maçonaria, contra a qual o projecto era dirigido, e a lei hoje se dirige.
O artigo é patentemente de um liberal, de um inimigo radical da Igreja de Roma, e de quem tem para com a Maçonaria e os maçons um sentimento profundamente fraternal.
Um leitor atento de Mensagem qualquer que fosse o conceito que formasse da valia do livro, não estranharia o anti-romanismo, constante, embora negativamente, emergente nele. Um leitor igualmente atento, mas instruído no entendimento ou ao menos na intuição das coisas herméticas, não estranharia a defesa da maçonaria em o autor de um livro tão abundantemente embebido em simbolismo templário e rosicruciano. E a este leitor seria fácil de concluir que, tendo as ordens templárias, embora não exerçam actividade política, conceitos sociais idênticos, no que positivos e no que negativos, aos da Maçonaria; e girando o rosicrucianismo, no que social, em torno de ideias de fraternidade e de paz ( Pax profunda, frater! ) é a saudação rosicruciana, tanto para Irmãos como para profanos), o autor de um livro assim seria forçosamente um liberal por derivação, quando o não fosse já por índole.
Mas, de facto, fui sempre fiel, por índole, e reforçada ainda por educação — a minha educação é toda inglesa —, aos princípios essenciais do liberalismo, — que são o respeito pela dignidade do Homem e pela liberdade do Espírito, ou, em outras palavras, o individualismo e a tolerância, ou, ainda, em uma só palavra, o individualismo fraternitário.
Há três realidades sociais — o indivíduo, a Nação, a Humanidade. Tudo mais é factício.
São ficções a Família, a Religião, a Classe. É ficção o Estado. É ficção a Civilização.
O indivíduo, a Nação, a Humanidade são realidades porque são perfeitamente definidos. Têm contorno e forma. O indivíduo é a realidade suprema porque tem um contorno material e mental — é um corpo vivo e uma alma viva.
A Nação é também uma realidade, pois a definem o território, ou o idioma, ou a continuidade histórica — um desses elementos, ou todos. O contorno da nação é contudo mais esbatido, mais contingente, quer geograficamente, porque nem sempre as fronteiras são as que deveriam ser; quer linguisticamente, porque largas distâncias no espaço separam países de igual idioma e que naturalmente deveriam formar uma só nação; quer historicamente, porque, por uma parte, critérios diferentes do passado nacional quebram, ou tendem para o quebrar, o vasículo nacional, e, por outra, a continuidade histórica opera diferentemente sobre camadas da população, diferentes por índole, costumes ou cultura.
A Humanidade é outra realidade social, tão forte como o indivíduo, mais forte ainda que a Nação, porque mais definida do que ela. O indivíduo é, no fundo, um conceito biológico; a Humanidade é, no fundo, um conceito zoológico — nem mais nem menos do que a espécie animal, formada de todos os indivíduos de forma humana. Uma e outra são realidades com raiz. A Nação, sendo uma realidade social, não o é material: é mais um tronco que uma raiz. O Indivíduo e a Humanidade são lugares, a Nação o caminho entre eles. É através da fraternidade patriótica, fácil de sentir a quem não seja degenerado, que gradualmente nos sublimamos, ou sublimaremos, até à fraternidade com todos os homens.
Segue de aqui que, quanto mais intensamente formos patriotas — desde que saibamos ser patriotas —, mais intensamente nos estaremos preparando, e connosco aos que estão connosco, para um conseguimento humano futuro, que, nem que Deus o faça impossível, deveremos deixar de ter por desejável. A Nação é a escola presente para a super-Nação futura. Cumpre, porém, não esquecer que estamos ainda, e durante séculos estaremos, na escola e só na escola.
Ser intensamente patriota é três coisas. É, primeiro, valorizar em nós o indivíduo que somos, e fazer o possível por que se valorizem os nossos compatriotas, para que assim a Nação, que é a suma viva dos indivíduos que a compõem, e não o amontoado de pedras e areia que compõem o seu território, ou a colecção de palavras separadas ou ligadas de que se forma o seu léxico ou a sua gramática — possa orgulhar-se de nós, que, porque ela nos criou, somos seus filhos, e seus pais, porque a vamos criando. (...)
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A verdadeira origem deste artigo está numa circunstância pessoal: o de haver muitos — muitos para quem conhece poucos—que me confessaram não compreender como, depois de escrever Mensagem, livro de versos nacionalista, eu tinha vindo para o Diário de Lisboa defender a Maçonaria. Dessa circunstância pessoal e concreta tirei a razão e a substância deste artigo impessoal e abstracto. Nada e a ninguém importa o que faz e pensa um poeta obscuro ou o defensor (um pouco menos obscuro) da Ordem Maçónica; mas alguma coisa e a todos deve importar que se distinga o que estava confundido, se aproxime o que por erro estava separado, e haja menos nevoeiro nas ideias, ainda que não seja por elas que haja de se esperar D. Sebastião.
Uma coisa, e uma só, me preocupa: que com este artigo eu contribua, em qualquer grau, para estorvar os reaccionários portugueses em um dos seus maiores e mais justos prazeres — o de dizer asneiras. Confio, porém, na solidez pétrea das suas cabeças e nas virtudes imanentes naquela fé firme e totalitária que dividem, em partes iguais, entre Nossa Senhora de Fátima e o senhor D. Duarte Nuno de Bragança.
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996.
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