O PRECONCEITO DA ORDEM
O PRECONCEITO DA ORDEM
Entre os vários preconceitos que salpicam as teses dos neo-monárquicos avulta, como grande mancha, o preconceito comtista da Ordem.
Evidentemente que por "ordem" os seus defensores não entendem a mera ordem material e ostensiva, aquela que a polícia guarda. Entendem a ordem nos espíritos também, a disciplina íntima de onde resulta o bom funcionamento, físico como psíquico, da engrenagem social. Eles compreendem, de resto, que não há ordem só material, que é nos espíritos que a ordem começa.
Posto isto, porém, há ainda a reparar que o conceito de ordem pode ser tomado em dois sentidos, consoante se entenda que ela existe, ou essencialmente na própria íntima constituição das forças sociais, ou essencialmente apenas no modo de essas forças se manifestarem.
Se se entende que a ordem existe tanto mais perfeitamente quanto mais perfeita conformidade básica há nos ânimos, quanto mais íntima e real a submissão à orientação geral da sociedade em que se vive, chega-se, como conclusão rigorosa, a este resultado: que o ideal social dos defensores da ordem é uma sociedade absolutamente nivelada, de onde não possam emergir valores nem aristocracias. Porque esses valores e aristocracias ou hão-de agir no sentido da orientação geral dessa sociedade, ou em sentido contrário. Se agem em sentido contrário, são, perante o conceito da ordem que examinamos, criadores de anarquia e de dissolução. E se agem no sentido da orientação social, ou agem criando-a, ou representando-a. Se agem criando-a, pressupõe-se que a maioria dessa sociedade é uma massa inerte e morta, incapaz de esboçar uma orientação social — e, nesse caso, como puderam surgir esses valores e aristocracias, e o poder criador que se lhes supõe? como, se a sociedade onde, por hipótese, existem é uma sociedade onde, pela mesma hipótese, não poderiam existir? A hipótese só é admissível se essa "aristocracia" for de estrangeiros: mas não é, por certo, uma "ordem" imposta por estrangeiros que os nacionalistas querem defender. Se, por outra, esses valores e aristocracias não criam, mas simplesmente representam e dirigem uma orientação social geral, teremos este absurdo: individualidades superiores, e portanto acentuadas, que só pensam em se subordinar e se apagar; dirigentes e mandantes com a mentalidade típica dos mandados e dos dirigidos. A este repugnante igualitarismo nos arrasta o conceito da ordem, na primeira das suas duas formas possíveis.
Mas não é esta, porventura, a "ordem" que os neo-monárquicos cantam. É no segundo dos dois sentidos apontados que tomam a palavra. A ordem existirá, portanto, não numa servil uniformização das orientações sociais, mas numa preocupação em que as manifestações delas sejam ordeiras. Isto é, cada partido político deve incluir, tácita ou expressamente, a preocupação da ordem no seu programa.
Mediram bem os neo-monárquicos as consequências sociais terríveis que resultariam de tal orientação?
Repare-se em que iríamos cair. Um partido político qualquer teria, além da preocupação das teorias políticas que o fazem tal, a preocupação da ordem. Tem de ter as duas preocupações com igual intensidade. Porque se está pronto a sacrificar a ordem à realização das suas teorias políticas, não tem, realmente, a preocupação da ordem. E se está pronto a sacrificar à ordem as suas teorias políticas, não é propriamente um partido político; pois que, tendo tais teorias, têm-nas por certo por essenciais à Pátria ou à Humanidade, e não vai sacrificar a Pátria ou a Humanidade à Ordem, que, em qualquer hipótese, só pode ter valor secundariamente à Humanidade ou à Pátria. Mas, se um partido político tem com igual intensidade determinadas teorias e a preocupação da ordem, ele, porque tem tais teorias e não outras, é fatalmente levado a crer que a verdadeira realização da ordem só pode ser obtida pela verdadeira realização dessas teorias. Porque não é de supor que um partido, que se preocupe com a ordem, julgue que os seus princípios partidários estão em desacordo com ela; nesse caso, ou não existia, ou seria um outro partido. Segue que a preocupação da ordem dará a um partido político uma vontade de dominar e de se impor absolutamente violenta, visto que é sentido como impreterivelmente necessário, para a manutenção da ordem, o seu domínio, o domínio dos princípios que representa. Donde se conclui que a preocupação da ordem, num partido político, eleva ao rubro as suas paixões; e que, portanto, num país onde todos os partidos tenham a constante preocupação da ordem, se estará em constante desordem e anarquia. É este, mesmo, o único modo de se chegar ao estado de anarquia social. Esse estado provém da excessiva preocupação da ordem.
Queda assim feito em farrapos o preconceito da ordem, roto por todos os lados o papel em que os neo-monárquicos embrulham as suas teorias de contrabando. Mas isto, com certeza, embora oriente, não satisfará o leitor. Ele quererá saber, sem dúvida, qual seja, sobre este ponto, a verdadeira noção sociológica. É fácil fazer-lha ver.
A ordem é nas sociedades o que a saúde é no indivíduo. Não é uma coisa: é um estado. Resulta do bom funcionamento do organismo, mas não é esse bom funcionamento. O homem normal só pensa na saúde quando está doente. Do mesmo modo, a sociedade normal só pensa na ordem quando nela aparece a desordem. O homem normal quando adoece, procura, não simplesmente sentir-se outra vez de saúde, mas atacar a doença; afastada ela, do seu afastamento resultará a saúde. De nada lhe serviria sentir-se de saúde, se essa sensação não proviesse do afastamento definitivo da doença, mas apenas da sua intermitência ou de uma anestesia qualquer. Na sociedade, semelhantemente: quando aparece a desordem, a sociedade sã procura logo. não manter a ordem, que pode ser provisória ou aparente, mas atacar o mal que produziu a desordem. A exclusiva preocupação da ordem é um morfinismo social.
Levemos até ao fim esta justíssima analogia. No indivíduo, a constante preocupação da saúde é um sintoma de neurastenia, ou de males psíquicos mais graves ainda. Na sociedade, paralelamente, a preocupação da ordem, é uma doença de espírito colectivo. Se os argumentos que acima expus não bastaram para insinuar esta conclusão no ânimo do leitor, ele pode verificar de todo a hipótese, reportando-se às circunstâncias sociais em que nasceu a moderna preocupação da ordem, e à espécie de cérebro onde ela surgiu definidamente.
Apareceu ela num período perturbado e anormal da política francesa e em plena vigência da doença chamada romantismo. É, caracterizadamente, uma ideia romântica.
O seu criador filosófico, o infeliz chamado Augusto Comte, toda a vida sofreu de alienação mental.
Da República (1910 - 1935) . Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Mourão. Introdução e organização de Joel Serrão). Lisboa: Ática, 1979.
- 89.1ª publ. in Eh real! , nº 1, Lisboa, 13 Maio 1915; 2ª publ. in Portugal , nº 1, Lisboa, 12-12-1915